Especial para o EM


Pegar um papelote de sacola de presente, não qualquer pedaço, mas aquele todo enroladinho que dá firmeza para segurar o peso do conteúdo: livros, roupas, lembrancinhas, brincos, colares, lápis, cadernos; enfim, qualquer coisa que se queira sustentar.


O cabo, a alça, a fita de papel, preta ou marrom, toda torcida. Destacar, separar, guardar, escolher, desenrolar, desfazer, desmanchar, observar, reparar, sentir, olhar a textura, perceber a forma, procurar um jeito, separar, esperar, aguardar, tentar outra vez, remontar a firmeza, notar as fibras, moldar o papel, desenhar plantas, elaborar florestas, segurar, cortar, juntar, colar, refazer, sustentar, sustentável, reimaginar velhas memórias.


Poderíamos nos perguntar: é possível reflorestar a imaginação? Sim, reflorestar o imaginário, nos responde Ailton Krenak.


Alexandre Brandão, em sua exposição “Novas naturezas”, em cartaz no Sesi Museu de Artes e Ofícios, me faz lembrar das senhoras que, em coletivo, passavam as tardes produzindo peças de crochê feitas de sacolas plásticas. Vejo-as nos traçados do artista, mas sobretudo em sua pesquisa sobre o desenho.


Há desenho nas pranchas dos viajantes que, ao explorar nossas matas, buscavam registrar a fauna. Alexandre desenha com a luz, com a sombra, com o resto, com as sobras, com o que não é tão descartável assim, com o orgânico e o inorgânico, com as marcas do peso que o calor imprime, com os impactos da crise climática, com os territórios de desmatamento, mapeando as bordas entre desertos e florestas.


Lembrei-me da artista Nice Firmeza, que criava mandalas de flores no jardim do Minimuseu Firmeza, em Fortaleza. Colocava flores nas plantas de uma só cor, trazia as flores do baobá para compor com outras na varanda da casa-museu. Seu jardim era também obra de arte, sempre viva, marcada por sua alegria. Todos lembram dos gestos de Nice em seu jardim.


Compor com as cores

Heloísa Juaçaba fazia arranjos florais junto de Lúcia Galvão; ambas amavam a arte de compor com as cores das flores e das folhagens. Todas artistas de Fortaleza, Ceará. A arte da paisagem, da natureza viva, da criação de espaços de bem-viver, como nos demonstra Luiza Helena Amorim, historiadora das artistas mulheres e do Minimuseu Firmeza.


Às mulheres, muitas delas, quando desejavam estudar artes, pintura ou escultura, eram reservadas as chamadas artes decorativas, os bordados, as cerâmicas e os arranjos de flores. Muitas preparavam os ateliês dos artistas homens, compondo cenas do cotidiano para suas naturezas-mortas.


Embora tivessem talentos, faltavam-lhes espaços de formação, direito de acesso e oportunidades. Ainda assim, foram as mulheres que trouxeram as artes da fibra, por exemplo, para dentro da arte moderna. Destaco aqui Marlene Trindade e Joice Custódio, artistas que transformaram os mundos da arte, ressignificaram práticas, romperam tradições patriarcais e preconceituosas e ampliaram as possibilidades de atuação e pesquisa artística.


Repertório de criação

Assim, o repertório de criação trazido por Alexandre Brandão em “Novas naturezas” é sobretudo um conhecimento construído, elaborado, fundamentado e experimentado por mulheres que vieram antes e também pelas que atuam contemporaneamente ao seu lado.


Alexandre remonta, retorce, refaz, recompõe, recupera, reorienta, reimagina, reforça, repensa, reduz, retorna, reaprende as plantas, os arranjos, as florestas, trazendo à tona o desejo de nos reabitar das matas. Afinal, há muitas plantas que já não fazem parte de algumas de nossas paisagens, especialmente nas cidades.


Quase não percebemos que o convite de Alexandre Brandão é olhar para um futuro ancestral, para referenciar novamente Krenak, ou talvez para a memória daquilo que muitos de nós já não saberão reconhecer como parte de suas vidas. Saberemos ler uma árvore? Ouvir as plantas? Conversar com os rios? Nos vincular às naturezas, praticar florestania, criar espaços de bem-viver?


O artista, em sua pesquisa, nos convida a olhar para suas esculturas, seus desenhos, suas paisagens de papel, como os sábios que dobram origamis, desejando que, a cada dobra e desdobra, a cada volta e revolta, a cada feixe de luz que incide sobre nossa montanha imaginária ou faz emergir nossa lua sonhadora, possamos reacender a capacidade de esperançar florestas, antes que as queimadas e as escavações as devorem por completo.


Reflorestar de dentro para fora, de fora para dentro, nossos espaços de vida comum. Bem viver é, por princípio, filosofia indígena, que pode ser compreendida na tessitura das cestarias, força vital, presente nos cestos e nos retorcidos das fibras das plantas.


“NOVAS NATUREZAS”
Individual de Alexandre Brandão. No Sesi Museu de Artes e Ofícios (Praça Rui Barbosa, 600, Centro). Visitação de terça a sexta-feira, das 10h às 17h, e aos sábados, das 9h às 17h. O museu fecha às segundas-feiras e domingos, e a entrada é permitida até as 16h30. Classificação indicativa: livre. Em cartaz até 3/1/26.

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*Doutora em História da Arte pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, professora de Teoria, Crítica e História da Arte na Escola de Belas Artes da UFMG

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