No Mês do Orgulho LGBTQIA+, conheça histórias de casais na cozinha em BH
Casais LGBTQIA+ comandam casas e cardápios em Belo Horizonte, levando para público, além de pratos saborosos, acolhimento e respeito
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Siga noJunho é o Mês do Orgulho LGBTQIA+ no mundo todo e o momento em que, minimamente, a reivindicação pelos direitos e contra os crimes sofridos por essa população se tornam assuntos mais comentados. Mas a luta dessas pessoas é diária e o debate também deveria ser. É preciso falar mais sobre os desafios e a resistência LGBTQIA+ na cozinha, área já muito criticada pelo tratamento dado às mulheres, inclusive, pelos assédios recorrentes.
Como é de se esperar, a vida de pessoas LGBTQIA+ no setor gastronômico, assim como em tantos outros espaços, não é fácil. Em meio a uma realidade de muito preconceito, casais formados por chefs, cozinheiros e proprietários de espaços culinários trabalham para construir ambientes acolhedores e seguros para clientes e trabalhadores. Afinal de contas, o amor também é uma forma de resistência.
Mistura de Minas e Pará
Fernanda Souza e Letícia Rosa compartilham a vida e a cozinha do restaurante e bar paraense Flor de Jambu, no Edifício Central, ao lado da Praça da Estação, Centro de BH. As duas se conheceram em 2020, em plena pandemia, pelo aplicativo de encontros Tinder. Nenhuma delas estava em busca de um relacionamento, mas, logo que começaram a conversar, já entenderam que havia futuro na relação.
O encontro presencial de Letícia e Fernanda aconteceu seis meses depois do primeiro contato on-line. “Quando nos vimos de fato pela primeira vez, passamos logo três dias juntas”, conta Letícia. Ela destaca, também, que uma se identificou com a outra. “O fato de sermos de cidades da região metropolitana, eu de Ribeirão das Neves (MG) e ela de Ananindeua (PA), nos uniu muito”, conta.
Não demorou muito para que Fernanda pedisse Letícia em namoro. Um mês depois desse encontro transformador, a cozinheira paraense resolveu dar um novo passo. O casal contou com o apoio dos amigos e familiares nesse momento especial em meio ao caos mundial advindo da pandemia da COVID-19.
As duas contam que a culinária teve papel primordial na relação, afinal, desde 2018, Fernanda já trabalhava com a comida de seu estado natal, o Pará, com encomendas e eventos. “Ela (Letícia) sempre gostou muito da comida paraense e eu da mineira. Foi uma junção ideal”, explica a cozinheira.
Desde que Letícia conheceu o açaí do Pará (R$ 45, 400ml), por exemplo, nunca mais conseguiu comer outro. Outros pratos típicos foram adaptados por Fernanda para que pudessem se encaixar na dieta vegana de Letícia. Hoje, o tacacá vegetal (R$ 28 – sem camarão) e o vatapá vegetal (R$ 35 – com cogumelo) são alguns dos itens favoritos dela no cardápio do Flor de Jambu.
Com amor, floresceu
Fernanda, que já tinha a empresa desde 2018, foi “puxando” Letícia para esse mundo. Com o namoro oficializado, elas tomaram a importante decisão de se mudarem para um espaço que pudesse comportar a operação do Flor de Jambu (que ainda não tinha um espaço físico).
De pouco em pouco, Letícia entrou na operação do negócio. O que era uma ajuda com os pedidos foi se tornando de fato um trabalho. Mas foi em 2022, quando foi inaugurado o espaço físico da Flor, como chamam o restaurante, que Letícia passou a atuar exclusivamente na gastronomia e abandonou o antigo trabalho em um escritório de e-commerce. Hoje, ela fica mais responsável pela parte administrativa, apesar de sempre dar uma “palinha” na cozinha, principalmente com os preparos veganos, sua especialidade.
Lugar seguro
Ao longo desses anos de atuação no setor gastronômico, Letícia e Fernanda tiveram que enfrentar o preconceito, que, infelizmente, ainda é muito recorrente no Brasil. “Acredito que, por sermos duas mulheres, precisamos enfrentar tanto o machismo quanto a homofobia”, destaca Fernanda.
Pensando nisso, as duas fazem de tudo para que o Flor de Jambu seja um refúgio em meio à triste realidade. “Acho importante falarmos sobre isso, pois, quando eu criei o Flor, queria justamente um lugar onde ninguém se sentisse acuado. Queria um lugar seguro para todos e também para nós, profissionais da cozinha que sofremos tanto com a insegurança desse meio”, destaca Fernanda.
Se for de paz, pode entrar
Essa também é a luta de André Calixto, sócio-proprietário do bar O Quinteiro, e Hiago Teodoro, gerente da casa, que fica no Bairro Floresta, Região Leste de BH. A proposta do bar é ser um espaço aberto para todos, sem qualquer distinção de tratamento. “Queremos ser um espaço para famílias, para o público LGBTQIA + e quem mais quiser vir”, destaca André.
Na prática, é isso que acontece. Além de muitas programações destinadas ao público LGBTQIA+, como shows de drags, a casa é muito procurada para diversos tipos de eventos, como aniversários e até mesmo chá de bebê.
Hiago conta que sempre recebe retornos de funcionários e clientes LGBTQIA +, que reforçam o quão acolhedor é o ambiente. “Também participo do recrutamento de freelancers para datas específicas e sempre priorizo o público LGBTQIA +”, complementa.
Algo fundamental que o casal destaca é que, apesar de serem homens gays e sofrerem, sim, preconceitos, eles ainda estão, de alguma forma, em uma bolha. “Sabemos e reforçamos que somos dois homens brancos, e, portanto, estamos em um espaço de privilégio. Reconhecemos isso sempre”, diz André.
Deu match
Assim como aconteceu com Fernanda Souza e Letícia Rosa, a história de amor de Hiago e André começou de forma despretensiosa pelo Tinder. “Tinha acabado de sair de um relacionamento de seis anos, baixei o Tinder pela primeira vez e descobri o André lá. Marcamos um encontro na mesma semana e depois de poucos dias já tinha até desinstalado o aplicativo”, conta Hiago.
André também não estava em busca de um relacionamento, mas, logo depois desse encontro, já sentiu que era hora de namorar. “Com umas duas semanas que nos conhecemos, começamos a namorar”, conta. Tudo isso aconteceu no fim de 2019, então, logo no início do namoro, eles precisaram enfrentar a pandemia da COVID-19, quando só iam para a casa um do outro (cada um morava com a sua família).
Com o fim do isolamento, André, que tinha um escritório de arquitetura com um sócio, acabou mudando o rumo de sua vida e abriu o bar, com o mesmo sócio, no fim de 2022. “Sempre gostei da cozinha, mas entrei em um curso de gastronomia para abrir de fato o restaurante”, destaca. Esse apreço pela cozinha, aliás, foi algo que sempre encantou Hiago.
Em determinados domingos do mês, inclusive, o prato favorito que André faz para ele é servido n'O Quinteiro. A moqueca de banana-da-terra (R$ 35) conquistou Hiago pela barriga.
Para se encaixar na nova rotina com o bar, Hiago, que trabalhava como assessor de sua irmã, que é influenciadora, fez um curso de bartender e passou também a trabalhar n'O Quinteiro. Hoje, ele ocupa o cargo de gerência na casa, que precisava de alguém de confiança para assumi-lo.
Unidas pela arte
A história de amor de Edla Eliza e Sereia Dias teve início em um set de filmagem, onde ambas eram figurantes. “Durante quase um mês de gravação, ficamos muito próximas, muito amigas mesmo”, destaca Edla, que é estudante de teatro e trabalha como atriz, além de auxiliar de cozinha no Espaço Yanã, Bairro Floresta, Região Leste de BH. Sereia já atua há mais de 12 anos na gastronomia e, ao lado de Edla, também é auxiliar de cozinha no bar e restaurante.
Com o fim das gravações, as duas se afastaram, já que não tinham o hábito de conversar por mensagem. Quis o destino, porém, que elas se encontrassem por acaso na rua, mais especificamente na inauguração da Rua Sapucaí reformada, um mês depois de se despedirem no set, no fim de 2024.
Tudo mudou mesmo quando Edla assistiu a um vídeo de Sereia nas redes sociais dizendo que tinha encontrado a mulher da vida dela. “Escrevi para ela que sabia que a mulher em questão era eu”, conta. As duas se envolveram, de fato, em janeiro deste ano e “rotularam” a relação como um namoro há apenas um mês.
Convite de uma amiga
As duas começaram a trabalhar no setor gastronômico depois da pandemia, por sentirem que o cenário das artes estava muito desvalorizado. “Percebo que muitos artistas acabam se encontrando na gastronomia, mas muitas vezes entram nesse meio por necessidade”, destaca Edla.
Sereia, que cozinhava apenas para a família e aprendeu “na marra” a trabalhar em cozinhas profissionais, foi convidada por Júlia Bonfante, responsável pela Saudosa Cozinha, restaurante do Espaço Yanã, a trabalhar lá em abril, quando a nova operação de cozinha foi inaugurada. “Já conhecia a Júlia desde os meus 14 anos. Mantivemos o contato e recebi esse convite este ano”, conta Sereia, destacando que a chef e amiga dá sempre muita liberdade para as trabalhadoras, além de sempre acolhê-las.
Foi por meio de Sereia que Edla entrou na Saudosa Cozinha. “Falei com a Júlia da minha namorada, que também trabalhava com isso, e ela a chamou também”. Edla começou como freelancer e foi contratada recentemente para trabalhar fixo na casa.
Espaço acolhedor
As namoradas, que já tiveram experiências em outras cozinhas, ressaltam a felicidade de estar em um espaço acolhedor e respeitoso como o Yanã. “Sabemos que aqui estamos dentro de uma bolha, a chefia da cozinha conversa com a gente de forma muito horizontal”, diz Edla.
As duas não são exceção por lá. O espaço é destinado, principalmente, ao público LGBTQIA + e dentre os funcionários, esse público também é uma prioridade.
Quem quiser experimentar um dos pratos favoritos de Sereia na casa deve pedir o “Escândalo (R$ 32), bolinho de grão-de-bico com maionese de alho, que, assim como a atriz e auxiliar de cozinha, é vegano.
Amor à primeira vista
A relação de Rodrigo Furtini e Bernardo Mosci, sócios da padaria e cafeteria Pão do Furtini, começou em uma troca de olhares. Bernardo, que é nascido em BH, mas morava em Manaus trabalhando com aviação, estava na capital mineira apenas por um fim de semana. Foi em uma festa que ele olhou para trás e viu Rodrigo. Logo, ficou interessado, mas achou que não daria em nada.
Rodrigo, apesar de ter “demorado”, nas palavras de Bernardo, para ir atrás dele, não deixou a noite acabar sem antes conhecê-lo. “De ambas as partes, foi amor à primeira vista”, destaca.
Os dois continuaram em contato depois daquele dia e Bernardo, que já estava em busca de novos rumos profissionais, decidiu voltar a morar em Belo Horizonte e entrar de vez no mundo de Rodrigo, que já tinha sua padaria.
“É engraçado que, quando eu conheci o Rodrigo, ele me disse que era padeiro, mas só depois fui entender que esse mundo ia muito além do pão francês”, comenta Bernardo, que se encantou, principalmente, com a fermentação natural.
Bernardo, que sempre teve o sonho de ter um espaço destinado à gastronomia, fosse um café, pizzaria ou restaurante, abriu uma loja onde trabalhava com os produtos do parceiro, que mantinha a sua padaria. Em pouco tempo, os dois sentiram vontade de unificar a produção e de passar mais tempo juntos. Passaram, então, a buscar uma casa para abrigar a nova operação.
Assim, em agosto de 2024, a Pão do Furtini, no Bairro Santo Antônio, Região Centro-Sul da capital, passou a ser uma padaria e cafeteria com grande capacidade e vasto cardápio, inclusive com bebidas alcoólicas. Hoje, eles são sócios. Enquanto Rodrigo fica responsável pela cozinha e operação, Bernardo é o administrador da empresa.
Sabor de memória
O momento de conhecer a padaria de Furtini foi um dos mais especiais para Bernardo. Um dos primeiros itens que ele experimentou por lá foi o cinnamon roll (R$ 14 a unidade), uma espécie de rosca de canela tipicamente norte-americana, envolta em calda de açúcar. “Esse prato me remeteu a minha infância, me lembrou muito a minha avó. Ela fazia uma rosca de canela muito parecida. Enquanto eu comia, escorriam lágrimas”, conta.
Rodrigo apresentou a Bernardo também um novo mundo da padaria, muito além do pão francês. “Falo que o Rodrigo me conquistou pelo estômago e pela fermentação natural”, diz. Hoje, inclusive, essa é uma das bandeiras do Pão do Furtini, a defesa e o investimento na fermentação natural, ainda pouco difundida no país.
Da violência ao orgulho
A história do Mês do Orgulho LGBTQIA +, celebrado em junho, tem início em um bar. O ano era 1969 e o dia 28 de junho. O bar nova-iorquino Stonewall Inn, no Bairro East Village, frequentado pelo público LGBTQIA +, foi invadido por policiais violentos. Essa poderia ter sido só mais outra ocorrência deste tipo, afinal, essas abordagens eram recorrentes na realidade dessas pessoas, que eram tão marginalizadas.
O cenário estadunidense naquele período era muito repressivo. Até 1961, os 50 estados do país consideravam o homossexualismo crime. A venda de bebidas alcoólicas em bares gays também não era permitida. Em meio a esse contexto, a população LGBTQIA + era, evidentemente, um alvo da polícia norte-americana.
Naquela manhã, os clientes e frequentadores do bar Stonewall Inn revidaram os ataques policiais. Essa movimentação deu início a uma verdadeira rebelião em frente ao estabelecimento, que chegou a durar seis dias.
A Revolta de Stonewall, como ficou conhecido o episódio, foi o grande motivo por trás da escolha do mês de junho para a celebração do orgulho LGBTQIA +. Um ano após a rebelião, em 1970, foi realizada a primeira parada gay em Nova York. Hoje, são milhares de manifestações e eventos que celebram o orgulho dessa população que acontecem por todo o mundo, em especial, no mês de junho.
Apesar de todo o simbolismo do mês de junho, a 26ª edição da Parada do Orgulho LGBTQIA+ de BH será realizada em 20 de julho. O evento está marcado no cruzamento das avenidas Afonso Pena e Brasil, na Região Centro-Sul.
LGBTfobia é crime
Infelizmente, nem todos os espaços são seguros para pessoas LGBTQIA +. Muito pelo contrário, o Brasil ainda se destaca como um dos países mais violentos do mundo para elas. Segundo dados do Atlas da Violência, a violência contra essa população cresceu mais de 1.000% em uma década no país. Entre 2013 e 2024, o número que mais se destaca é o de crimes contra travestis que aumentou 2.340%.
Em meio a esse cenário, é preciso reforçar sempre que a LGBTfobia é crime no Brasil. Desde 2019, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), a prática passou a ser englobada pela Lei de número 7.716 de 1989, que prevê punição de até três anos de prisão.
Diante da ausência de legislação específica sobre a LGBTfobia, o STF passou a enquadrar as ofensas baseadas na orientação sexual na Lei de número 14.532 , sancionada em 2023, que tipifica a injúria racial. Tal conduta, de acordo com o artigo 2º-A do documento, é definida como: “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional”.
Com esse avanço, a lei que, até então criminalizava apenas condutas racistas – e homofóbicas – genéricas, passou a englobar comportamentos dirigidos a vítimas específicas.
Serviço
Flor de Jambu (@florde_jambu)
Avenida dos Andradas, 367, loja 211A, Centro
Quinta e sexta, das 12h às 14h30; sábado, das 12h às 15h30
(91) 98064-5780
O Quinteiro (@quinteirobar)
Rua Salinas, 1008, Floresta
De quarta a sexta, das 18h à 1h; sábado, das 15h à 1h; domingo, das 12h às 18h
(31) 99558-1761
Saudosa Cozinha, no Espaço Yanã (@espacoyana)
Avenida Francisco Sales, 127, Floresta
De segunda a sexta, das 11h30 às 15h30
(31) 99203-1704 (WhatsApp)
Pão do Furtini (@paodofurtini)
Rua Carangola, 358, Santo Antônio
De terça a sexta, das 10h às 21h; sábado, das 9h às 20h; domingo, das 9h às 14h
(31) 98473-8820 (WhatsApp)
*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino