Interessada por alimentação, comportamento e ciência, iniciou sua carreira no Estado de Minas como estagiária de Saúde e hoje é repórter da área. Vencedora do Prêmio de Jornalismo CDL/BH, também já cobriu política, cultura, esportes e temas gerais.
No churrasco brasileiro, a estrela é a carne crédito: Pexels
O cheiro da fumaça e o vaivém dos garçons carregando cortes suculentos de mesa em mesa ainda são marcas registradas de um costume que resiste ao tempo. Diante da ascensão de novas casas - que preferem se definir como parrillas, steakhouses ou simplesmente “casas de carne” -, o nome “churrascaria” foi desaparecendo das fachadas e do marketing gastronômico. Mas, apesar dessa transformação no vocabulário, alguns estabelecimentos clássicos continuam abertos, ajustando operação, linguagem e cardápio, sem abrir mão do ritual do espeto e do serviço que privilegia fartura, variedade e liberdade de escolha.
Pesquisas recentes ajudam a explicar por que o churrasco permanece como um hábito sólido de consumo. Um levantamento feito pela consultoria Saga, em parceria com o Instituto Qualibest, mostra que 80% dos churrascos feitos em casa não têm hora para terminar. Outros 70% dos brasileiros costumam “churrasquear” com a família, reforçando o caráter coletivo e afetivo da prática. Mais da metade da população (55%) faz churrasco pelo menos uma vez por mês.
Mesmo com a popularidade das casas de carne e da gourmetização, churrascarias tradicionais mantêm vivas a experiência da carne no espeto Rede Beija Flor/Divulgação
No Foodservice, os dados são igualmente expressivos. O Instituto Foodservice Brasil (IFB), em parceria com a CREST, indica que mais de 70% das ocasiões de consumo de churrasco acontecem no almoço. Esse é um dado revelador: a prática, que antes era marcada por encontros prolongados nos fins de semana, tornou-se também parte da rotina.
Em 2024, o segmento movimentou mais de R$ 850 milhões. Além disso, o público que consome esse tipo de carne está concentrado em adultos acima de 35 anos, faixa etária presente em mais de 60% das ocasiões e que tende a valorizar tradição, sabor e experiências que combinem qualidade com familiaridade.
Esses números mostram que, mesmo em um mercado competitivo e em transformação, as churrascarias tradicionais ainda encontram espaço, especialmente por dialogarem com uma clientela que associa churrasco não apenas à refeição, mas à experiência cultural e afetiva.
O modelo de churrascaria tradicional é facilmente reconhecível: carne no espeto, fatiada diante do cliente, em fluxo contínuo. O sistema privilegia variedade, satisfação imediata e liberdade de escolha. O cliente experimenta, aprova (ou recusa) e segue adiante, sempre com a expectativa de que um próximo corte pode agradar ainda mais.
Nas parrillas e steakhouses, por outro lado, o consumo se dá por porções individuais. O cliente escolhe um corte específico, geralmente de 300 gramas, e se compromete com ele até o fim, correndo o risco de não acertar o ponto ou não gostar do corte. Essa diferença estrutural ajuda a explicar a permanência do rodízio como opção atrativa para públicos diversos.
Nos últimos anos, a linguagem dos cortes também se transformou. O que antes era resumido em carne “de primeira” ou “de segunda” ganhou novos nomes e status. O rodízio de hoje inclui não apenas os clássicos do traseiro, como picanha, alcatra e fraldinha, mas também recortes do dianteiro rebatizados: shoulder (raquete), cowboy, denver, brisket e short rib. Antigamente pouco valorizados, esses cortes ganharam prestígio com o aprimoramento genético do gado e a popularização de raças britânicas como Angus e Hereford, que oferecem marmorização e maciez diferenciadas.
DE ONDE VEM?
A origem do churrasco remonta à Pré-História, quando o homem descobriu que a carne aquecida no fogo ficava mais saborosa e macia. No Brasil, o professor Ramão Hendrischky, coordenador do curso de gastronomia da Estácio Maracanã, lembra que o costume ganhou força no século 18, com os tropeiros. Durante longas viagens, eles assavam carne em espetos improvisados, tradição que se consolidou no Sul do país.
Mais tarde, nasceu o serviço “à brasileira”, ou seja, a carne chegando à mesa no espeto, fatiada diante do cliente, em uma performance que se tornaria a marca das churrascarias urbanas. Ramão observa que, de dez anos para cá, houve a chamada “gourmetização”. “Entraram cortes que o brasileiro nunca tinha ouvido falar”, comenta, lembrando que a globalização trouxe não apenas a parrilla argentina e uruguaia, mas também o barbecue norte-americano para o vocabulário e para a mesa do consumidor brasileiro.
Ramão observa que, nos últimos 10 anos, houve a chamada ‘gourmetização’ no universo da churrascaria Arquivo pessoal
CHURRASCO COMO CIÊNCIA
O chef Ricardo Penninha é um nome que se tornou referência quando o assunto é carne. Churrasqueiro profissional há 27 anos, ele começou cedo e transformou a curiosidade em pesquisa científica sobre comportamento da carne, técnicas e acabamentos de preparo. O resultado desse mergulho é o livro “Alquimia do Churrasco”, atualmente em sua 11ª edição. Cada nova edição incorpora cortes, métodos e propostas de serviço que surgem no mercado, como varais de carne e o retorno do fogo de chão.
“Os cortes foram ganhos. Antes, quase não tínhamos Hereford e Angus. Com a abertura do mercado, a genética do rebanho melhorou. Mas, no fim, o que manda é o teste organoléptico, que avalia cor, aroma, textura e sabor”, afirma Penninha. Para ele, a essência do churrasco brasileiro permanece intocável: “Se o cliente quer picanha, tem que ter picanha. Ela é rainha do churrasco, mesmo que em provas cegas, nem sempre apareça entre as melhores.”
O chef Ricardo Penninha tem 27 anos de experiência e 11 edições do livro Alquimia do Churrasco Arquivo pessoal
Apesar da multiplicidade de cortes e técnicas estrangeiras, Penninha defende o básico. “Sal grosso é nosso padrão. Quem tenta melhorar com temperos demais corre o risco de dar gosto de tempero à carne.”
O chef também valoriza o espetinho, muitas vezes visto como simplificação popular. “É versátil e eficiente. Com carne de qualidade, cada pedaço sai selado e suculento. Faço espeto de bife ancho, de fraldinha e até de picanha. O resultado é fantástico.”
Cortes do clássico ao “novo” popular
Picanha Rainha do churrasco, presença obrigatória por desejo do cliente, mesmo que nem sempre seja a melhor em provas cegas.
Fraldinha Corte valorizado por textura e sabor marcante, quando bem trabalhado.
Bife ancho Vocabulário latino que se popularizou no Brasil; pede selagem firme e serviço rápido.
Cupim e contra-filé Campeões de pedidos nas churrascarias de estrada, sustentam a tradição do churrasco no quilo.
T-bone, prime rib, short rib Cortes importados do vocabulário americano, hoje comuns no rodízio brasileiro.
Shoulder, denver, brisket Recortes de dianteiro que ganharam status com a melhoria genética do gado.
Produção a todo vapor
Símbolo do rodízio à brasileira, o Porcão completa 50 anos da marca em 2025. Criado em 1975, no Rio de Janeiro, chegou a Belo Horizonte em 2003 e permanece como referência. O CEO do grupo Meet Porcão, Fernando Júnior defende o diferencial do modelo. “Rodízio nada mais é que degustar vários cortes. Na parrilla, você compra um bife de 300 gramas. No rodízio, o consumo médio chega a 700 gramas. Se um corte não agrada, o cliente troca por outro; ele não fica preso à escolha inicial.”
Para ele, o crescimento das parrillas se deve à facilidade operacional. “É mais simples trabalhar com quatro ou cinco cortes fixos. Já a churrascaria tradicional precisa oferecer 30 ou 40 cortes em fluxo constante.”
Para manter qualidade e preço, o Porcão verticalizou a produção. “A gente produz o nosso gado. Ganhamos rastreabilidade, controle de padrão e reduzimos atravessadores. Isso justifica o valor do rodízio.” A clientela se reparte entre executivos no almoço, pela previsibilidade do serviço e amplitude de escolha, e jovens à noite, atraídos pela liberdade e pela fartura. “Você vê aniversários de adolescentes no rodízio. A lógica de ‘comer à vontade’ conversa com esse público.”
O processo de adaptação incluiu simplificar o que não traduz a essência da casa. “Tive buffet japonês por anos, mas eu sou da turma da churrascaria. Tirei. Mantivemos apenas uma saladeria prática e um antipasto com queijos, pães, pastas e embutidos. Além disso, corre o risco de você desperdiçar comida ou vendê-la passada.”
Para Fernando Júnior, CEO do grupo Meet Porcão, o crescimento das parrillas se deve à facilidade operacional Arquivo pessoal
Tradição na estrada
Se o Porcão representa o rodízio urbano e sofisticado, a Rede Beija-Flor simboliza a tradição das estradas. Fundada em 1996, no km 13 da BR-381, em Sabará, começou servindo PFs e marmitas. Rapidamente, entendeu que o churrasco seria sua marca. Hoje, espalhada por diferentes rodovias, preserva o mesmo perfil de público: caminhoneiros, viajantes e famílias em deslocamento.
A proposta é unir praticidade à tradição. As casas oferecem buffet completo de acompanhamentos e churrasco no quilo, permitindo ao cliente montar seu prato de acordo com a fome e o gosto. Os cortes mais procurados continuam sendo o cupim e o contra-filé, ícones do gosto popular.
Marcelo Teles, coordenador da rede Beija Flor Arquivo Pessoal/Divulgação
Para garantir padrão, a rede mantém fornecedores homologados e um centro de produção próprio, que cuida da limpeza, preparo e embalagem das carnes antes do envio às unidades. “A essência segue sendo brasa e cuidado em cada detalhe”, afirma Marcelo Teles, coordenador da rede. Ele lembra que ajustes foram feitos ao longo do tempo: menos buffets genéricos, mais foco no essencial.
Para o professor Ramão, o futuro não será de exclusão, mas de convivência entre formatos. “A parrilla democratizou a conversa sobre ponto, maturação e cortes. Já a churrascaria mantém acesa a sociabilidade da mesa grande.” Nesse sentido, a sobrevivência das casas clássicas depende mais do que “ganhar” uma disputa de narrativa: trata-se de afinar a operação, respeitar cortes conhecidos, servir com execução correta e comunicar de forma clara.
No fim, o que mantém vivas as churrascarias é o que vai além do prato: a experiência coletiva. Ao ver o espeto rodar pelo salão, o cliente não recebe apenas carne, mas a confirmação de uma tradição que atravessa gerações.
Receita
Chimi mineirinho para acompanhar
Chimi mineirinho para acompanhar Globo/Reprodução
Por: chef Ricardo Penninha
INGREDIENTES
• 200 ml de água
• 100 g de ervas de chimichurri
• 30 g de alho picado e frito
• 50 g de salsinha com talos picada
• 30 g de suco de limão
• 5 g de sementes de coentro amassadas
• 600 ml de azeite
• Sal a gosto
MODO DE FAZER
Misture todos os temperos na água para hidratar e aguarde 20 minutos. Depois, acrescente o azeite e ajuste o sal. Sirva como molho de mesa, fresco e aromático, perfeito para acompanhar carnes.