O fenômeno da série O Eternauta na Netflix transcendeu o entretenimento e se transformou em um catalisador histórico na Argentina. Desde a estreia em 30 de abril de 2025, as consultas sobre identidade às Abuelas de Plaza de Mayo se multiplicaram por seis, saltando de 18 para 106 pedidos semanais. O impacto da adaptação da graphic novel de Héctor Germán Oesterheld reacendeu uma busca que se arrasta há quase cinco décadas.
A série protagonizada por Ricardo Darín não apenas conquistou audiências internacionais como se tornou a produção de língua não inglesa mais assistida da plataforma nos primeiros dias. Mas seu verdadeiro poder reside em algo muito mais profundo: a capacidade de conectar ficção científica com trauma histórico real, transformando entretenimento em ferramenta de memória coletiva.
Por que a série provocou este despertar sobre identidade?
A história da família Oesterheld representa uma das tragédias mais devastadoras da ditadura militar argentina. O criador de O Eternauta foi sequestrado em abril de 1977, junto com suas quatro filhas. Duas delas, Diana e Marina, estavam grávidas quando desapareceram. Seus filhos nasceram em cativeiro e permanecem desaparecidos até hoje.
Manuel Gonçalves Granada, secretário das Abuelas de Plaza de Mayo e neto restituído em 1997, explica o fenômeno: “Nos dá esperança ver que a partir da série se reativam os mecanismos criados pelas Abuelas”. As organizações lançaram campanhas específicas perguntando: “Você está assistindo O Eternauta? Se nasceu em novembro de 1976 ou entre novembro de 1977 e janeiro de 1978 e tem dúvidas sobre sua identidade, entre em contato conosco”.
Como as redes sociais amplificaram a busca?
A estratégia das organizações de direitos humanos aproveitou o alcance viral da série. Cartazes promocionais foram modificados nas ruas de Buenos Aires, sobrepondo em preto e branco as fotos de Héctor Oesterheld e suas quatro filhas. A imagem se tornou viral nas redes sociais, compartilhada tanto pelas Abuelas quanto pela organização H.I.J.O.S..
Elsa Sánchez de Oesterheld, esposa do criador, buscou os netos até sua morte em 2015. Uma foto sua sorrindo, tirada meses antes de falecer, circula nas redes com a mensagem: “Se por alguma casualidade chegam a esta foto, olhem bem porque é quase certo que vocês, netas ou netos de Héctor e Elsa, se reconheçam nessa sorriso”.
Que números revelam o impacto da série?
Os dados são impressionantes. Entre 30 de abril e 7 de maio, as Abuelas receberam 106 consultas de pessoas nascidas entre 1975 e 1983. Na mesma semana de 2024, foram apenas 18. As denúncias de presuntas apropriações de bebês durante a ditadura saltaram de 21 para 62 após o lançamento da série.
Dos cerca de 300 netos ainda buscados pelas Abuelas, dois são especificamente filhos de Oesterheld: o bebê de Diana e Raúl Ernesto Araldi, que deveria nascer em novembro de 1976, e o filho de Marina e Alberto Oscar Seindlis, previsto para dezembro de 1977 ou janeiro de 1978.
Como a ficção científica se torna ferramenta de memória?
O Eternauta funciona como alegoria poderosa da resistência durante a ditadura. A neve tóxica que mata ao toque espelha o clima de terror que se abateu sobre a Argentina. Os sobreviventes que se unem para enfrentar a invasão alienígena refletem a necessidade de solidariedade em tempos de opressão extrema.
Miguel Fernández-Long, genro de Oesterheld, avalia: “A série logrou transmitir o conceito do herói coletivo. A história coletiva, a memória compartida, ajuda a sanar”. A participação de Martín Oesterheld, neto do autor, como consultor criativo garantiu que o espírito original da obra não se perdesse na adaptação.
O sucesso de O Eternauta prova que algumas histórias transcendem o entretenimento. Quando ficção e realidade se entrelaçam de forma tão profunda, uma série pode se tornar muito mais que produto cultural: transforma-se em instrumento de justiça histórica e busca pela verdade.