Minas Gerais vive uma década de retração na imunização infantil. Desde 2015, as coberturas vacinais vêm caindo no estado, com quedas acentuadas a partir da pandemia de COVID-19 e dificuldade crescente em manter a adesão aos esquemas completos. É o que revela a primeira edição do Anuário VacinaBR 2025, publicação inédita que aponta, ainda, que nenhum dos estados brasileiros atingiu a meta de cobertura da vacinação infantil. Minas espelha a tendência nacional de abandono entre doses, padrão que se repete em diferentes imunizantes e compromete a proteção contra doenças já erradicadas, como o sarampo.
O relatório, lançado nesta terça-feira (17/6), é uma iniciativa do Instituto Questão de Ciência (IQC), com apoio da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e parceria do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A publicação é resultado do cruzamento de dados públicos sobre vacinação com registros populacionais e de nascidos vivos, e cobre o período de 2000 a 2023. A proposta é fornecer um retrato detalhado da situação vacinal do país, com foco na infância e na adolescência, e contribuir para a formulação de estratégias locais de enfrentamento.
Ainda que o estudo não contemple dados de 2024, não incluídos, segundo os pesquisadores, devido a inconsistências nos bancos oficiais do Ministério da Saúde, a publicação traça um panorama sobre o que tem ocorrido com os esquemas vacinais nos últimos anos. “O que a gente nota é que a partir de 2012 o declínio vacinal começa a piorar, cai com mais força a partir de 2014 e 2015. Esse é um fenômeno que não é localizado no Brasil, é uma questão global”, afirma Paulo Almeida, diretor executivo do IQC e coordenador do relatório.
Desde 2015, o país apresenta uma redução progressiva nas coberturas vacinais, agravada a partir de 2020, em decorrência dos impactos da pandemia de COVID-19. Mesmo com uma recuperação iniciada em 2022 e consolidada no ano seguinte, segundo os dados do relatório, os índices continuam abaixo do ideal em praticamente todos os imunizantes, revelando, além de falhas no alcance das metas estabelecidas pelo Ministério da Saúde, dificuldade estrutural em manter a adesão completa aos esquemas vacinais.
“O país, que até então mantinha índices elevados e era referência na América Latina, passou a enfrentar um cenário de declínio constante. A retomada parcial dos indicadores, perceptível a partir de 2022, ainda está muito aquém do ideal”, afirma Paulo Almeida.
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Um dos exemplos está na aplicação da vacina pneumocócica 10-valente (VPC-10), que protege contra formas graves de pneumonia e outras infecções causadas pela bactéria Streptococcus pneumoniae. A vacina, presente no Calendário Nacional desde 2010, passou a ser aplicada em duas doses (aos 2 e 4 meses) e um reforço (aos 12 meses) a partir de 2017. A meta de cobertura é de 95% para cada dose do esquema.
Em 2023, Minas Gerais alcançou 82,8% de cobertura, pouco acima da média nacional (82,19%), mas ainda distante do ideal. O reforço teve desempenho ainda pior, com apenas 74,5%. Entre os estados do Sudeste, Minas ficou à frente apenas do Rio de Janeiro, que registrou uma taxa de 71,8%.
A evasão entre doses também se mostra crítica na vacinação contra difteria, tétano e coqueluche. O esquema prevê três doses da pentavalente aos 2, 4 e 6 meses, além de dois reforços com a tríplice bacteriana aos 15 meses e 4 anos. Em 2023, Minas iniciou com 83,6% de cobertura na primeira dose. Mas o índice caiu gradualmente: 83,3% na segunda, 81,2% na terceira, 71,6% no primeiro reforço e apenas 69,4% no segundo. As quedas mostram a dificuldade em manter a adesão ao esquema completo, algo que se repete em praticamente todos os imunizantes.
A tríplice viral, vacina para o controle do sarampo, caxumba e rubéola, teve comportamento semelhante. Em 2023, Minas atingiu 84,5% de cobertura na primeira dose, aplicada aos 12 meses de idade, mas apenas 62,5% na segunda. Esse último índice coloca o estado acima da média nacional, mas ainda muito aquém da meta de 95%. Segundo o anuário, apenas quatro estados atingiram esse patamar. Nenhum deles conseguiu ultrapassar 80% de cobertura para o esquema completo, e catorze unidades federativas ficaram abaixo de 50%.
O abandono do esquema vacinal preocupa especialistas, especialmente diante do retorno de casos autóctones de sarampo no país. Em 2024, o Brasil voltou a registrar transmissão interna da doença, após quase três anos sem ocorrências. Foram confirmados dois casos no município de São João de Meriti (RJ) em março e um em São Paulo em abril. Minas Gerais, até o momento, não registrou novos casos, mas está em alerta. A vacinação irregular pode abrir caminho para novos surtos.
Ministério da Saúde se posiciona
Em nota, o Ministério da Saúde afirma ter revertido a tendência de queda nas coberturas vacinais após quase uma década de retrocessos. Segundo a pasta, 13 das 16 vacinas do calendário infantil apresentaram crescimento nos índices de cobertura em 2023 e 2024. A tríplice viral, de acordo com o órgão, superou a meta nacional de 95% de cobertura. “Em 2024, o Brasil saiu da lista dos 20 países com mais crianças não vacinadas no mundo (zero-dose) – até 2022, o país ocupava o 7º lugar no ranking mundial”, informa o ministério. O país também recebeu a recertificação como território livre do sarampo, “conquista possível graças ao avanço da vacinação”.
A pasta atribui os resultados à ampliação das ações do Programa Nacional de Imunizações (PNI), ao combate ao negacionismo, à volta das grandes campanhas de mobilização – como o Dia D de Vacinação – e à imunização em escolas. Também destaca o fortalecimento do abastecimento de vacinas e o repasse extra de R$ 150 milhões anuais para apoiar estratégias locais adaptadas à realidade de estados e municípios.
Dados do painel de imunização do Ministério da Saúde, atualizado ontem (18/6), mostram um cenário de melhora na cobertura vacinal em Minas Gerais no ano passado. Entre as 16 vacinas do calendário infantil, o estado atingiu as metas preconizadas pela pasta para quatro imunizantes: BCG, tríplice viral, pólio oral e rotavírus. Por outro lado, os dados confirmam a constante queda nos índices. A cobertura para a vacina meningocócica C, que protege contra um tipo grave de meningite bacteriana, por exemplo, caiu em relação a 2023, passando de 97,47% para 82,20%.
Base histórica
Em sua primeira edição, o Anuário VacinaBR surge com a proposta de preencher uma lacuna antiga na saúde pública brasileira: a ausência de uma série histórica consolidada sobre cobertura vacinal. “O Brasil sempre teve uma cultura vacinal exemplar, mas faltava uma base sólida, em capacidade de análise e de legado mesmo, para acompanhar e agir com base em evidências”, explica Paulo Almeida.
O levantamento é o primeiro documento estatístico abrangente sobre imunização infantil no país e, segundo o coordenador, a expectativa é que ele funcione como um instrumento técnico para ampliar a transparência e embasar políticas públicas.
Um dos pontos mais relevantes observados na publicação é a heterogeneidade regional das coberturas, tanto entre diferentes vacinas quanto entre municípios vizinhos. Há localidades com boas taxas para determinados imunizantes e desempenho ruim em outros. Para Paulo, isso revela problemas específicos nas estratégias de execução. Ele aponta que a principal dificuldade, em muitos casos, não está na adesão inicial, mas no retorno para concluir o esquema vacinal.
“Tem pessoas que a gente tem certeza que não têm hesitação na vacinação. Elas tomaram a primeira dose. Então o problema pode ser, inclusive, de se lembrar que precisa voltar para tomar a segunda dose”, comenta.
Além de fatores comportamentais e comunicacionais, o abandono pode ser agravado por falhas logísticas, como a ausência de vacinas nos postos de saúde. Estudo da Confederação Nacional de Municípios (CNM), publicado no início deste mês, revelou que 108 cidades de Minas estão sem vacina contra catapora, entre as 241 que responderam ao levantamento. A pesquisa analisou o período de 11 de abril a 14 de maio de 2025.
Além da ausência desse imunizante, nome popular da varicela, a terceira edição do estudo denominado “Falta Vacina Para Proteger Crianças Brasileiras” indicou que 124 cidades relataram desabastecimento de pelo menos um tipo de vacina. Ao todo, o estudo denominado contemplou 1.490 municípios do Brasil, o que corresponde a apenas 26% do total de municípios das unidades federativas do país.
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Ainda de acordo com o estudo da CNM, a segunda vacina que tem mais relatos de falta em Minas é a contra Covid-19 para crianças, que seria a inativada XBB do laboratório Moderna, de acordo com 32 municípios. Em terceiro lugar, seria a contra Covid-19, sem especificações da faixa etária, em 31 municípios. Em seguida, a falta da Tetraviral (Sarampo, caxumba, rubéola, varicela) em 20 municípios; dengue (Qdenga) em 19; Mpox (Varíola Bavarian Nordic) em 7; Meningocócica C em 7; e a DTP (Difteria, Tétano e Pertussis) em 6. Outros 9 tipos de vacinas foram citadas, mas os relatos tiveram menos de 5 municípios cada.
Com base na série histórica reunida no anuário VacinaBR, é possível identificar padrões e gargalos em diferentes regiões, o que pode orientar estratégias adaptadas à realidade local. Embora o estudo não tenha como finalidade explicar as causas da queda vacinal, ele contribui para mapear tendências e oferecer subsídios para a formulação de políticas públicas, como acontece com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
O plano, segundo o coordenador do projeto, é que a próxima edição da publicação incorpore os dados de 2024 e 2025, e ainda amplie suas funcionalidades, com possibilidade de visualização por município e cruzamento de informações.
(Com informações da estagiária Laura Scardua*)
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