Jalecos na mala e a vontade de aprender estampada no olhar. Foi com essa bagagem que 18 médicos angolanos cruzaram o Atlântico para encontrar na rotina das unidades de saúde de Belo Horizonte um terreno fértil de aprendizados. Desde maio, o grupo percorre corredores, escuta histórias e compartilha saberes nos centros de saúde da Região Norte da capital. A troca faz parte de um intercâmbio que une Brasil e Angola em torno de um objetivo comum: fortalecer a Atenção Primária à Saúde (APS) e ampliar horizontes profissionais por meio da vivência direta com o SUS.


Até setembro, eles mergulham no dia a dia das Equipes de Saúde da Família (ESF), em um estágio de residência médica que valoriza a prática, a escuta e o olhar atento sobre o cuidado com a comunidade. A APS é o primeiro nível de contato da população com o sistema de saúde. Por meio dela, são oferecidos cuidados focados na promoção da saúde, da prevenção de doenças, do diagnóstico, do tratamento, da reabilitação e do acompanhamento. É considerada a principal porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS).


A escolha da capital para sediar parte do programa se deve a uma cooperação internacional entre os ministérios da Saúde do Brasil e de Angola. Além de Belo Horizonte, outros médicos realizarão estágios na Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto (SP), e na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Diferentemente do Programa Mais Médicos, que busca ampliar o acesso à saúde em regiões desassistidas, o estágio dos médicos angolanos tem foco no desenvolvimento profissional. 

Nesse período, os residentes acompanharão de perto o funcionamento das Equipes de Saúde da Família (ESF) e os fluxos de atendimento, realizando atividades de segunda a sexta-feira, em horário integral, com carga horária de 40 horas semanais. Atualmente, a cobertura dessas equipes na capital está em 86,58% da população, e os demais usuários são atendidos pelos profissionais de apoio. Assim, 100% dos moradores recebem assistência na Atenção Básica à Saúde.


Entre os rostos atentos que circulam pela unidade de saúde Lajedo, em BH, está o de Evandra Sapunete, uma das médicas angolanas que vive seu primeiro intercâmbio. Recém-chegada ao Brasil, ela se diz encantada com a acolhida calorosa dos colegas e a oportunidade de conhecer de perto o funcionamento da Atenção Primária. “Está sendo uma experiência muito boa. A equipe é muito recíproca e organizada. Estamos trabalhando com medicina comunitária. É o lugar onde o paciente entra ou vai pedir algum socorro. Também damos seguimento a gestantes e aos pacientes de doenças crônicas”, compartilha ela.

A médica conta que os 18 intercambistas foram divididos em sete centros de saúde em duplas, sendo cada um inserido em uma equipe. “Com essa equipe, vamos acompanhar os trabalhos, observando e interagindo, para entender como trabalham aqui e como funciona o SUS, para, quando chegarmos ao nosso país, podermos agregar os conhecimentos segundo nossa realidade”, explica ela.


Nova especialidade


Apesar de a medicina, em essência, falar uma linguagem universal, Evandra percebe contrastes importantes entre a prática em Angola e o que tem vivenciado na capital mineira. O que mais chama sua atenção não está nos procedimentos clínicos, mas na estrutura por trás do cuidado. “Aqui vocês já têm uma organização muito sólida, uma equipa robusta com vários profissionais atuando juntos: médico de família, psicólogo, fisioterapeuta, dentista...”, observa. 

Na foto, o médico Félix Diogo

Jair Amaral/EM/D.A Press

Em Angola, Evandra explica que essa estrutura ainda está em construção — ela e seus colegas são a primeira turma de formação especializada em medicina comunitária no país. A percepção é compartilhada por Félix Diogo Sobrinho, colega de intercâmbio, que ressalta os desafios enfrentados em Angola, onde a especialidade ainda engatinha.

“Somos os primeiros médicos que a Saúde Nacional de Angola vai lançar para o mercado nessa área”, diz ele. No sistema público do país, médicos de família ou primários praticamente não existem — e mesmo no setor privado, são raríssimos. Por isso, a vivência brasileira tem sido inspiradora, segundo Félix. 


“Aqui encontramos uma APS bem organizada, que vai ao encontro do doente, da família, da comunidade. Isso evita que muitas doenças avancem até os hospitais, evitando que haja um descalabro a nível do atendimento terciário, e é esse modelo que queremos levar conosco”, afirma ele.

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Outro ponto marcante é o uso de sistemas informatizados, que permitem acompanhar o histórico do paciente de forma contínua e integrada. “Isso facilita muito a interação e dá um olhar mais completo sobre cada caso. É algo que aprendi aqui e quero levar comigo”, completa Evandra.

*Estagiária sob supervisão do subeditor Thiago Prata

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