Nossas Desigualdades – Saúde

94% das cidades mineiras não têm médicos oncologistas

O EM conta a história das famílias que viajam para tratar a doença longe de suas casas

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Receber o diagnóstico de uma doença como o câncer altera completamente a dinâmica de uma família, diante de todos os sacrifícios – mentais e físicos – a serem feitos para garantir o tratamento. Em todo o Brasil, inclusive em Minas Gerais, porém, essa adversidade é ainda maior para as milhões de pessoas que precisam combater a enfermidade longe de suas casas, diante da falta de atendimento especializado em grande parte do interior. Levantamento exclusivo feito pelo Núcleo de Dados do Estado de Minas mostra que apenas 6% dos municípios do estado contam com um oncologista em seu corpo médico – fragilidade que faz os pacientes e seus acompanhantes deslocarem até mesmo centenas de quilômetros em busca da cura. A análise foi feita com base no Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS). 

 

Mãe de três filhos, Marluce José Coelho enfrenta essa logística desafiadora para tratamento do câncer há 12 anos. Diagnosticada em 2013 com um tumor maligno na mama, que depois resultou em uma nova neoplasia maligna na tireóide, ela sai de Jequitinhonha para combater a doença em Belo Horizonte – uma distância de quase 700 quilômetros, cerca de 13 horas de viagem de ônibus.  

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 “Tive que entrar na Justiça para conseguir vir para BH. O promotor me tranquilizou bastante e deu um prazo para a Secretaria Municipal de Saúde resolver o meu tratamento. Com cinco dias, a secretaria conseguiu um ônibus de uma cidade próxima (Palmópolis, na mesma região) para me levar a uma consulta com um mastologista no Hospital das Clínicas, onde eu tive um ótimo atendimento. Estou indo lá até hoje. Já perdi as contas quantas idas e vindas precisar fazer”, diz a ex-professora.  

 

O caso de Lúcia Martins Fátima, de 65 anos, também é emblemático. Ela sai de Governador Valadares, cidade-polo do Vale do Rio Doce, para conseguir tratamento em BH. Apesar do município onde vive dispor de médico oncologista no DataSUS, não há especialista dedicado ao mieloma múltiplo, um tipo de câncer que atinge a medula óssea. 

"Eu já sou transplantada, mas a quimioterapia que preciso não é fornecida em Valadares. Eu vou a BH toda semana para fazer o tratamento. O mais complicado é a longa viagem. Eu saio de lá meia-noite, chego em BH às 5h, faço o procedimento até 10h e só chego em casa à noite. Chego muito desgastada. Imagine pegar estrada depois de uma quimioterapia?", afirma.

Sacrifício coletivo

O tratamento oncológico requer, muitas vezes, muito apoio dos familiares. Quando acontece longe de casa, o sacrifício se torna coletivo – e mais caro, diante dos gastos com locomoção, alimentação e até mesmo com hospedagem em alguns casos. 

Aos 45 anos, Fernando Paulo de Lima Júnior enfrenta o vai e vem semanal para garantir o tratamento da mãe, Elza Fernandes de Lima, 71. Diagnosticada com mieloma múltiplo, ela chegou a fazer um transplante em 2023, mas o combate à mazela continua. O deslocamento deles é de aproximadamente 120 quilômetros, entre Araxá (Alto Paranaíba) e Uberaba (Triângulo). 

"A gente teve uma dificuldade muito grande, principalmente no início, para conseguir o transporte. Ela foi de van inicialmente, pela prefeitura. Mas, não estava muito bom porque estava muito desconfortável. A doença afeta demais o sistema imunológico. Agora, ela começou a ir de carro, também da prefeitura. A viagem dura em torno de duas horas, quatro horas de ida e volta", diz.  

Para além da preocupação com a mãe, a limitação financeira trazida pelo tratamento tira o sono de Fernando. Elza precisa de um medicamento de alto custo, o lenalidomida, para combater o tumor. A família precisou entrar na justiça para garantir o acesso via SUS, o que exigiu a contratação de um advogado especializado. "Fizemos empréstimos para cobrir essa despesa. Eu fico me perguntando: se minha mãe precisar ficar internada, como vamos fazer? Não conhecemos ninguém em Uberaba. A Prefeitura de Araxá oferece uma casa de apoio para os pacientes, mas ela é bastante precária", afirma.

Com deslocamento menor, de cerca de 80 quilômetros, a cuidadora Jussara Leondes, 32, enfrenta viagens frequentes para garantir o tratamento do marido, Mário de Morais, 40. A rotina cansativa para enfrentar o câncer é dividida com a criação de duas filhas, de 9 e 11 anos. "Não há acesso a tratamento oncológico aqui em Pará de Minas (Centro-Oeste), então ele recebe atendimento em Divinópolis (mesma região), onde é bem assistido. Ele está na fila para fazer o transplante em BH", diz a mulher. 

As viagens se tornaram ainda mais desafiadoras diante da condição física de Mário, que chegou a pesar 41 quilos antes de iniciar o combate ao mieloma múltiplo. "Ele não se mexia mais na cama. Recebeu sete bolsas de sangue antes de iniciar o tratamento, além da soroterapia. Toda semana, para poder fazer a quimioterapia, era uma luta para conseguir essa ambulância. Pedimos a vereadores, advogados... Hoje, contamos com a família para ter acesso ao transporte de carro. Antes, era sempre uma angústia entre segunda e terça-feira para saber se teríamos ou não esse transporte", afirma Jussara.

Os reflexos do vai e vem

A oncologista clínica aposentada Maria Nunes Álvares trabalhou em BH por 48 anos com esse tipo de tratamento. Ela descreve como "sofrimento terrível" o ir e vir dos pacientes do interior que foram tratados ao longo de décadas por ela na capital. "O combate à doença é bastante difícil. Ele resulta em náuseas, vômitos, queda de cabelo, emagrecimento e muita indisposição. Além das dores provocadas pelo tratamento. A viagem só agrava ainda mais esse desconforto", diz. 

Para a especialista, o estado deve investir em mais centrais de tratamento do câncer (veja abaixo a resposta do governo). Ela cita, por exemplo, a importância do Hospital Imaculada Conceição, em Curvelo, cidade localizada na Região Central do estado. "É muito importante que o governo pense em determinadas especialidades, como hematologia e pediatria, porque isso facilita bastante o tratamento dos pacientes", afirma. 

 

Na ativa em BH, o oncologista Gustavo Costa Baumgratz Lopes ressalta que o tratamento contra o câncer requer um atendimento multidisciplinar, o que aumenta os custos e dificulta a oferta desse serviço nas cidades do interior. "É fundamental compreender que a atividade oncológica de alta qualidade transcende a presença do médico oncologista. Ela demanda uma infraestrutura robusta e especializada, incluindo equipamentos de diagnóstico por imagem avançados, laboratórios de patologia clínica e anatomia patológica precisos, centros de radioterapia, farmácia para manipulação de quimioterápicos e, crucialmente, equipes multidisciplinares integradas", afirma. 

Dessa maneira, o médico acredita que a concentração dos oncologistas em BH acontece, principalmente, pela impossibilidade de prestar um trabalho de qualidade no interior. "A necessidade de deslocamento constante para o tratamento oncológico impõe uma série de limitações severas aos pacientes, que vão muito além do tempo gasto na estrada ou da simples consulta médica. Essa dificuldade reflete não apenas a distância física, mas também a complexa teia de suporte e infraestrutura que o tratamento do câncer exige", diz.

Cenário em números

Minas Gerais tem 925 médicos oncologistas clínicos registrados no Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS). Desses, cerca de 70% estão em Belo Horizonte. São 648 profissionais do tipo na capital – o que ilustra a desigualdade no acesso a esse tipo de tratamento no estado. Os dados consolidados pela reportagem são de abril deste ano. 

Ao mesmo tempo, apenas 52 municípios têm ao menos um oncologista listado no DataSUS, incluindo a capital. Portanto, somente 6% das 853 prefeituras mineiras. Depois de BH, as maiores concentrações estão em Ipatinga (31), Juiz de Fora (25), Uberaba (25) e Montes Claros (15).

A posição do governo

Em nota, a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) informou que "o tratamento oncológico no estado é descentralizado e realizado por meio de hospitais habilitados como Unidades de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Unacon) e Centros de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Cacon)". Atualmente, o estado conta com 40 equipamentos do tipo, "sendo que quatro deles prestam exclusivamente serviço de radioterapia, integrando complexos hospitalares especializados".  

 

De acordo com a gestão, cabe a esses hospitais a oferta de "diagnóstico diferencial e definitivo, estadiamento da neoplasia, início tempestivo do tratamento e acompanhamento contínuo dos pacientes". Ainda assim, a SES-MG confessa que há desafios enfrentados, como a ampliação do acesso ao diagnóstico precoce da doença e a superação da "escassez pontual de profissionais especializados, como cirurgiões oncológicos". 

A pasta ainda esclarece que "adota estratégias de reorganização da rede sempre que necessário, além de investir em iniciativas como o Programa Cuidar na Hora Certa, por exemplo, que visa acelerar o acesso a consultas, exames e procedimentos especializados, relacionados ao diagnóstico e tratamento do câncer de mama, com foco em mulheres de 50 a 69 anos". 

Ainda está no planejamento do estado a abertura de novos serviços oncológicos nas cidades de Araguari, Itajubá, Belo Horizonte, Janaúba, Juiz de Fora e Oliveira.

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