Dominguinhos da Pedra: o eremita do Espinhaço
Amante desiludido que viveu 42 anos entre pedras, bichos e seu violão alimenta imaginário de visitantes e moradores da Serra do Cipó, eternizado em estátua
compartilhe
Siga noNo alto das montanhas de Itambé do Mato Dentro, um homem escolheu viver como se o tempo tivesse parado. Domingos Albino Ferreira, conhecido como Dominguinhos da Pedra, trocou a vida em sociedade por uma lapa na Serra do Cipó, a cerca de dez quilômetros da cidade, e ali ficou por mais de quatro décadas. Entre pedras, bichos do mato e um violão de cordas minguadas, construiu uma história que atravessou gerações, povoou a memória de uma cidade inteira e hoje está eternizada em concreto às margens da Estrada Real.
Dominguinhos nasceu em 1932, em Dom Joaquim, também na Região Central de Minas. A vida o levou por São Paulo, Cuiabá e fazendas do interior mineiro, mas foi na Serra do Cipó que fincou raízes. Aos 37 anos, apaixonou-se por uma das filhas do fazendeiro para quem trabalhava — um amor intenso, mas platônico. Dizem que ela era sempre atenciosa, chegando a costurar roupas para ele. Dominguinhos passou a cultivar um sentimento profundo, do qual ela jamais teve conhecimento.
Depois que a moça se casou com outro, Dominguinhos, com o coração partido, decidiu se isolar na parte da cadeia montanhosa da Serra do Espinhaço. “Era uma pessoa muito simples e não precisava de tanta coisa para sobreviver, por isso ele sobreviveu esse tempo todo aqui”, conta o montanhista João Ricardo Duarte Dornelas, amigo e visitante frequente do eremita.
Em viagem a Itambé do Mato Dentro, a equipe do Estado de Minas visitou a pedra onde Dominguinhos ergueu sua casa, guiada pelo montanhista. No abrigo, ainda repousam alguns de seus pertences, como garrafas plásticas e um fogão improvisado. No mesmo local, foi erguida uma singela homenagem: um túmulo marcado por uma cruz, guardando a memória do eremita.
Leia Mais
João se lembra nitidamente da primeira vez que foi até seu abrigo. Antes dele, um médico, encantado pela história, havia levado um rádio de presente para Dominguinhos. “Ele achou que era muito caro, que não precisava daquilo. Mas o médico disse: ‘O dia que se sentir sozinho, você liga o rádio e, com isso, esquece um pouco da falta de companhia, da convivência com as pessoas”, lembra João.
Quando chegou sua vez de se apresentar, João disse que era de Santa Bárbara, município também na Região Central do estado, e ouviu uma história de como Dominguinhos se hospedou no hotel da sua família. “Ele descreveu o hotel direitinho. E eu disse: ‘Você dormiu lá mesmo, porque o Hotel Quadrado foi do meu bisavô, onde eu fui criado’. A partir daí ele emendou um assunto atrás do outro, e eu não consegui mais falar nada. Só disse que voltaria outro dia pra continuar o papo", contou à reportagem.
Ao contrário de Juquinha, outro eremita famoso da Serra do Cipó que distribuía flores aos viajantes e exalava leveza, Dominguinhos carregava um certo peso no olhar. “A história deles é um pouco diferente. No alto das montanhas se refugiam os mais alegres e os mais tristonhos. Dominguinho era mais tristonho. Essa melancolia com certeza vinha da tal suposta amada que não quis saber dele”, diz João.
Ainda assim, era receptivo. Quem encarava a trilha até sua lapa encontrava um homem de barba cerrada, roupas gastas, magro, com olhar firme e jeito educado. Recebia visitantes com boas histórias e, se estivesse inspirado, tentava dedilhar o violão de duas cordas. Não cantava bem, não tocava melhor, como relata João, mas se orgulhava de mostrar alguma música. “Ele falava compulsivamente. Muito sério, comedido, mas falava sem parar. Talvez por ficar tanto tempo sozinho, quando encontrava alguém, queria dizer tudo de uma vez", conta João.
Dominguinhos não sabia ler nem escrever, mas falava sobre justiça social, integridade, amor ao próximo, tudo com um vocabulário simples. Vivia de forma rústica. Mantinha os alimentos pendurados no teto da caverna para fugir dos animais, fazia a unha com facão e não tomava banho. Alimentava-se de arroz, feijão, ovos e frutas. Comia pouca carne e convivia com onças, cobras, ouriços e “soinzinhos”, como chamava pequenos roedores da mata. Nunca teve arma, mas guardava ferramentas para lidar com as tarefas do dia a dia.
Antes de se isolar, fez de tudo um pouco: balaios de taquara para carvoeiros, mexia com ferro-velho, vendia pipoca. Mas foi na caverna que construiu sua verdadeira rotina. “Olha, é ser guerreiro demais sobreviver na condição que ele sobrevivia. Sou montanhista há muitos anos e acho que não conseguiria ficar ali nem 42 horas. E ele sobreviveu 42 anos”, diz João, com um misto de admiração e incredulidade.
Sua sobrevivência dependia ainda de laços com a comunidade. Conquistou aposentadoria rural com ajuda de amigos, e um deles se encarregava de buscar o pagamento em Passabém todos os meses, levando junto uma cesta básica com arroz, fubá, ovos, queijo e gordura.
Com o tempo, a saúde de Dominguinhos fraquejou. Foi levado para um asilo, longe da lapa que o abrigou por tantos anos. João guarda com emoção a última conversa que tiveram quando o amigo estava internado. “Quando me despedi dele, ele me falou: ‘Me leva, cara, me tira daqui. Você vai para Itambé, né? Então me leva’. Eu disse que ia dar mais uma passeada por lá e depois voltava pra buscá-lo. Mas não consegui voltar. Pouco tempo depois, tive notícia da morte dele", contou com a voz embargada e segurando uma lágrima.
Dominguinhos da Pedra morreu em 2011, aos 79 anos. Hoje, quem passa pela Serra do Cipó pode ver sua estátua e imaginar a figura magra, de barba espessa, recebendo visitantes com fala apressada, tentando arrancar uma música hesitante do violão. "Ele é um ícone, porque é muita perseverança", afirma João.
Em 2016, cinco anos após a morte do eremita, sua presença foi eternizada pela artista Rosilândia Patrícia, que esculpiu uma estátua de 3,5 metros de altura, a pedido da Prefeitura de Itambé do Mato Dentro. Fica a poucos metros de onde viveu, próxima à Estrada Real, e o retrata com o inseparável violão. A obra é uma espécie de marco, como a estátua de Juquinha na outra ponta da serra, quase 60km distante.
Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia
São figuras distintas, mas complementares no imaginário local. Juquinha, flor e sorriso; Dominguinhos, pedra e verbo. Ambos escolheram as montanhas como lar e, de alguma forma, se tornaram parte delas. "Não sei te explicar como alguém se isola e gosta do convívio com as outras pessoas. Eles têm ali em comum o isolamento, a maneira de sobreviver, de não ter residência fixa, a humildade", conta João.