Casos de feminicídio: como identificar se o homem é abusivo ou violento?
Violência contra a mulher cresce no Brasil e especialistas explicam como reconhecer sinais de abuso e onde buscar ajuda
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Siga noNão passa um dia sem que notícias de feminicídios e de outras formas de violência contra a mulher ocupem os noticiários. Só nesta semana, em Minas Gerais, três casos chocaram a população. No sábado (16/8), em Uberlândia, uma policial penal de 43 anos foi morta pelo companheiro, também policial penal, dentro do apartamento onde moravam. No mesmo dia, em Belo Horizonte, a auxiliar administrativa Priscila Azevedo Mundim, de 46 anos, foi encontrada asfixiada ao lado do policial penal Rodrigo Caldas, de 45 anos, suspeito do crime.
Ainda na mesma data, em Divinópolis, no Centro-Oeste mineiro, uma mulher foi agredida pelo marido com um banco de madeira na cabeça. A vítima, resgatada inconsciente pelo Samu, sofreu traumatismo craniano e ficou em estado grave.
Outro caso que ganhou repercussão recente foi o do empresário Renê da Silva Nogueira Júnior, de 47 anos, preso em Belo Horizonte pelo assassinato do gari Laudemir de Souza Fernandes, de 44 anos. Embora não seja um feminicídio, Renê já tinha registros em São Paulo e no Rio de Janeiro relacionados a agressões contra mulheres, incluindo ex-companheiras e familiares. Questionado sobre esse histórico, o investigado negou os crimes. “Eu respondo por uma luxação do quinto metatarso da minha ex esposa. Mas já tenho uma medida cautelar contra ela, dada pelo Ministério Público de São Paulo”, disse.
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Nem todo homem, mas sempre um homem
O Brasil registrou, em 2024, o maior número de feminicídios desde a criação da lei que tipifica o crime, em 2015: foram 1.450 mulheres assassinadas, uma a cada seis horas, geralmente por parceiros ou ex-parceiros; - e 2.485 homicídios dolosos e lesões corporais seguidas de morte, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025.
Esses números não refletem apenas a violência física. Para a psicanalista Camila Camaratta, eles revelam uma falência simbólica da capacidade de elaborar perdas, lidar com frustrações e transformar impulsos em palavras ou negociações. “Quando essa capacidade falha, o sujeito age para destruir, calar, eliminar aquilo que não consegue elaborar. O feminicídio é justamente isso: uma passagem ao ato que denuncia uma falência profunda na possibilidade de lidar com o outro”, explica.
Sob essa ótica, o feminicídio é mais que um dado criminal: é um sintoma social e cultural que expõe uma masculinidade em crise. A falta de referências sólidas sobre o que significa ser homem ou mulher e como coexistir com o desejo do outro gera angústia, ressentimento e atos extremos.
Por que tantos homens estão matando mulheres?
O problema não é restrito ao Brasil. Dados de 2023 da ONU Mulheres mostram que mais de 80 mil mulheres foram assassinadas de forma intencional no mundo, sendo 60% dentro de casa, pelos próprios parceiros ou familiares.
Entre os fatores apontados por organismos como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) estão:
- Normas patriarcais enraizadas
- Ciúme patológico
- Histórico de violência na infância
- Falhas institucionais na prevenção
- Cultura que ainda normaliza a agressividade masculina
A psicóloga observa que, em muitos casos, o homem mata para reafirmar um senso de posse. “É como se o sujeito dissesse: ‘não suporto que o outro exista sem ser meu’. Quando falta a capacidade de elaboração da perda, falta também a mediação. O impulso vira ação sem filtro, e o feminino se transforma em ameaça a ser eliminada”, avalia.
A psicanalista acrescenta que a rigidez das imagens de masculinidade, associadas ao poder, ao controle e à honra, contribui para que homens interpretem a autonomia feminina como afronta. Essa lógica, segundo ela, é reforçada por comunidades virtuais como os incels e grupos redpill, que pregam a submissão da mulher ao homem.
Nesse contexto, fatores psíquicos individuais, como uso abusivo de álcool e drogas ou traços de personalidade antissocial, podem agravar o risco. Mas, como destaca Camaratta, “é uma bomba-relógio que estoura quando nenhuma instância simbólica, social, afetiva ou psíquica funciona como barreira”.
O pediatra e psicanalista Donald Winnicott (1896-1971) já apontava que vínculos primários frágeis dificultam o desenvolvimento de recursos psíquicos para suportar frustrações. Assim, em um mundo de laços frágeis, o outro pode ser visto como ameaça, não como companhia.
A historiadora e psicanalista Élisabeth Roudinesco, em obras como "A Família em Desordem" e "O Eu Soberano", aponta que a queda das estruturas tradicionais do patriarcado deixou um vazio simbólico ainda não preenchido por novas narrativas de masculinidade.
Como identificar relações abusivas?
Apesar de os números revelarem a dimensão da violência, muitas mulheres não conseguem reconhecer sinais de abuso, principalmente quando estão emocionalmente dependentes do agressor. A psicóloga Najma Alencar destaca que essa dependência é um fator de silenciamento.
“As mulheres não foram ensinadas a identificar os sinais de um relacionamento abusivo. Muitas nem sabem que violência não é apenas física, mas também sexual, psicológica, moral ou patrimonial”.
Para ajudar suas pacientes, Najma aplica um questionário com 12 perguntas que apontam o grau de dependência emocional. Responder “sim” para as questões indica um vínculo marcado pela submissão e pelo medo de abandono:
- Você sente necessidade de consultar o seu parceiro para tudo o que faz?
- Você é incapaz de aproveitar os momentos em que está sozinha?
- Sua felicidade depende exclusivamente do seu parceiro e não consegue suportar a ideia de um término?
- Você se afastou dos amigos e da família desde que começou essa relação?
- Você não se atreve a tomar a iniciativa em nada e não expressa sua opinião por medo de desagradá-lo?
- Qualquer atividade que você faz sem ele é chata e monótona?
- Você já se fez de vítima para chamar a atenção dele?
- Sua vida não tem sentido sem ele?
- Você vive com medo dele ir embora?
- Você acha que tem muita sorte de alguém tão incrível querer ser seu parceiro?
- Você é muito ciumenta?
- Você perdoaria uma traição para não terminar o relacionamento?
Segundo a psicóloga, superar essa dependência exige autocrítica, autoestima e autonomia, além de acompanhamento terapêutico. Mas, quando a relação é marcada por abuso, é fundamental procurar ajuda. “Ao menor sinal de abuso, a mulher deve buscar apoio, seja em uma Delegacia da Mulher ou com alguém de confiança. Uma rede de apoio é essencial para que ela encontre coragem de sair dessa situação”, ressalta.
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Como posso conseguir ajuda?
De acordo com a 10ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, feita pelo DataSenado em 2023, três em cada dez brasileiras já sofreram violência doméstica. No mesmo levantamento, 74% das mulheres afirmaram ter percebido um aumento da violência doméstica e familiar no último ano.
Ainda assim, a maioria das vítimas não procura as autoridades. Em 2023, 30% das brasileiras declararam já ter sofrido violência doméstica ou familiar, mas 61% não foram a uma delegacia.
Para esses casos, existe a Central de Atendimento à Mulher, o número 180, que funciona 24 horas por dia, de forma gratuita, e oferece:
- Orientações sobre leis e direitos das mulheres
- Informações sobre serviços de acolhimento, como a Casa da Mulher Brasileira
- Encaminhamento a delegacias, defensorias públicas e centros de referência
- Registro e envio de denúncias aos órgãos competentes
- Apoio e informações sobre a rede de atendimento em todo o país