Foi durante as férias, limpando a estante dos livros que pertenceram aos meus pais, que encontrei o que não procurava. Tira poeira daqui, passa o pano dali, e puxei, da parte mais alta do móvel, o caderno de capa de couro desenhada com o Sol e três coqueiros. Desci da escada imediatamente e deixei o resto do serviço para depois. Nas minhas mãos, abria-se um registro das memórias de minha mãe, Ephigenia, do período entre 1942 a 1947, quando estudou Direito no Rio de Janeiro. Não punha os olhos no caderno havia décadas, então, entre surpreso, emocionado e curioso com aquela obra do acaso, abri a primeira página, encantado, principalmente pelo título escrito em letras elegantes, com caneta-tinteiro: “Eles pensavam assim...”.


Reconheceria a caligrafia da minha mãe em qualquer lugar do planeta, pois ela foi minha professora, e, de vez em quando, reclamava que minha letra estava feia, que não havia me ensinado daquele jeito. Eu ria, pois era a mais pura verdade – e os garranchos só foram piorando com os dias de correria. Lembrei disso ao dar uma folheada rápida, no maior cuidado, para as páginas amarelecidas pelo tempo não despencarem. 

 

Futuros advogados deixaram registrados em anotações de meados da década de 1940 seus temores, angústias e indignações em um dos momentos mais sombrios da história humana

HELI LARA LIMA/ESP. EM
 


No começo, fiquei receoso de estar invadindo a “intimidade dos mortos”. Depois, respirei fundo e li com atenção os textos deixados ali registrados por alguns dos colegas e professores da então jovem universitária, boa parte fazendo referência à Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em 2025, o término do conflito que ceifou cerca de 60 milhões de vidas completa 80 anos, e as palavras daqueles jovens, nascidos nas primeiras décadas do século passado e contemporâneos do horror global, me transportaram a outra dimensão, em uma viagem sem hora para voltar.


Cada frase do caderno traz uma atualidade impressionante. Os então futuros advogados falam de “uma civilização sobre um montão de ruínas”, o que me conduziu às imagens modernas da Faixa de Gaza em escombros, de cidades da Ucrânia dilaceradas, da Síria tentando se reerguer. Havia nos jovens de então inúmeras incertezas quanto ao futuro. Num tempo em que o fascismo era uma realidade brutal, e não ameaça ou xingamento, os estudantes de Direito temiam os tentáculos do movimento, definido como “a grande nódoa do século”.


Mas, como sempre, havia saídas. E esperança: “Enquanto podemos sorrir, nem tudo está perdido”, escreveu uma aluna do curso de Direito. E deixou um recado forte: “Fora da cultura e da liberdade não há salvação, nem para os indivíduos, nem para os povos”. Política, religião, amor, comportamento, futuro, sonhos, anseios da juventude, amizade e sentimentos fazem parte desse caderno de recordações alheias.


ESPÍRITO DOS TEMPOS


Quando iniciou o curso de Direito em 1942, aos 20 anos, minha mãe, “belo-horizontina da Rua Itajubá”, com gostava de falar, morava no Rio de Janeiro com o pai, José Lopes de Jesus, que era da Marinha do Brasil e atuou nas duas guerras. Ela, inclusive, certamente se espelhando no pai, tentou ser voluntária da Cruz Vermelha, conforme me revelou certa vez. Foram os estudos que impediram esse propósito.


Em um recorte do “Jornal do Brasil”, de 12 de novembro de 1982, encontrei o registro de que meu avô, o capitão de fragata José Lopes de Jesus, fora um dos sobreviventes de um navio afundado por submarinos alemães. Corria o ano de 1917, quando o Brasil entrou na então chamada Grande Guerra (1914-1918), e meu avô era um marinheiro de 17 anos.

 

Futuros advogados deixaram registrados em anotações de meados da década de 1940 seus temores, angústias e indignações em um dos momentos mais sombrios da história humana

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JOVENS COM UMA GUERRA SOBRE AS CABEÇAS


Talvez venha daí minha paixão por livros e filmes ambientados nas duas guerras mundiais. Mas, de volta ao caderno de memórias, ler aqueles manuscritos não ficcionais me deixou com todos os sentidos aguçados: a visão frente a letras tão diferentes, algumas quase incompreensíveis; o tato, ao passar os dedos sobre as páginas; o olfato, ao sentir o cheiro do papel pálido e marcado por manchas amarronzadas, porém ainda suporte perfeito para armazenar tais lembranças. A audição veio da vontade de ouvir minha mãe contando as histórias, e o paladar, obviamente, do sabor de cada parágrafo, ideia, posicionamento, legado.


Mesmo a milhares de quilômetros do “front”, a turma da minha mãe vivia como se tivesse uma espada sobre a cabeça. Em 16 de novembro de 1942, assim escreveu a estudante Rosamaria (mantenho aqui apenas os prenomes dos autores) sobre os horrores da Segunda Guerra, o conflito mais sangrento e com maior número de mortes da história da humanidade: “Quando vemos a guerra que estraçalha corpos e almas, como se quisessem edificar uma nova civilização sobre um montão de ruínas, quando a fé e a crença, o amor à Pátria e à família são meras palavras para se dizer em discursos, nós pensamos que ninguém mais se entende e que se fala um idioma de ódio e vingança. Mas ninguém nunca se entendeu verdadeiramente. São apenas desejos e ódios que vêm à tona como restos de naufrágio de uma alma”.


Naqueles anos em que o fascismo, personificado em gênero, número e grau por Benito Mussolini (1883-1945), fazia o mundo tremer ao lado do nazismo de Adolf Hitler (1889-1945), uma também estudante, de quem não consegui “decifrar” o nome no caderno, escreveu em letras garrafais: “O fascismo é a grande nódoa do século. Anula totalmente a personalidade humana. Não deixa o pobre raciocinar, ir para a frente, caminhar para a luz, para o amor. Quer que os ventres não cessem de fornecer carne para os canhões. ‘Pelos seus frutos, os conhecereis’. Ele forja as guerras. Não se envergonha de vilipendiar a honra dos povos livres. Invade nações pacíficas e laboriosas. Mata reféns inocentes como os antigos cordeiros. Fuzila sábios e heróis. Torna velhos, pelo terror e pela angústia, os corações dos meninos que são novos como rebentos”.


Em 17 de novembro de 1942, ano em que o Brasil declarou guerraàs forças do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), ficando ao lado das nações aliadas (França, Inglaterra, Estados Unidos e União Soviética), o colega Hugo escreveu o seguinte, a respeito do título “Eles pensavam assim...”: “...É justo que digamos o que pensamos nós, mas é preciso dizer, agora, neste momento em que o mundo sofre profunda crise, alguma coisa que valha. (...) Pensamos que o valor das ações humanas não está nos seus resultados e, sim, nos seus fins e nos esforços para realizá-los”. No ano seguinte (1943), foi criada a Força Expedicionária Brasileira (FEB), e, em 1944, enviados 25,3 mil militares para lutar na Itália.

 

Futuros advogados deixaram registrados em anotações de meados da década de 1940 seus temores, angústias e indignações em um dos momentos mais sombrios da história humana

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SENTIDOS DA VIDA


Fiquei imaginando aquela época, em plena Era Vargas (de 1930 a 1945), o período da história brasileira que teve à frente o gaúcho Getúlio Vargas (1882-1954). É bom lembrar que, de 1937 a 1945, Vargas governou o país de forma ditatorial, no chamado Estado Novo. Era um tempo em se escrevia a lápis e a caneta sobre a folha em branco, ou se datilografavam documentos, em que livros e professores eram, sem dúvida, as maiores fontes de conhecimento para os universitários, e as notícias chegavam nas ondas curtas do rádio e nos jornais impressos, alguns circulando duas vezes no dia. Qual era o sentido da vida? Qual a ideia de felicidade? Que caminho seguir?


João pensava assim: “Vivemos eternamente insatisfeitos, procurando qualquer coisa para preencher o vazio doloroso que existe em nosso coração e nossa mente. Vivemos no temor contínuo da morte, e, o que é pior, no temor da dilacerante incerteza sobre o que há do outro lado da vida. Procuramos religiões e, com elas, construímos muralhas, atrás das quais buscamos segurança e conforto. Infelizmente, essas muralhas são construídas sobre areia, e as ondas da dúvida estão constantemente arrebentando de encontro aos seus alicerces, deixando expostas as estruturas, que tão cuidadosa e perseverantemente construímos”.


Rosamaria foi novamente direto ao ponto. “Nós, que ainda temos uma crença e que na existência encontramos uma finalidade, sentimos que a felicidade está no bom momento que passávamos, num sorriso e num ‘Sonho de amor”, de Liszt (Franz Liszt, 1811-1886, compositor húngaro) ou num ‘Concerto’ de Tchaikovski (Piotr Tchaikovski, 1840-1893, compositor russo) (...) Quando não cremos mais que haja um espírito de humanidade, além de um desejo interesseiro de ser recompensado, dentro da intimidade das almas, nós sentimos como se fôssemos os únicos incompreendidos na face do mundo.”


Fiquei refletindo sobre o texto esperando uma saída, uma resposta vinda daquela futura advogada. E ela chegou preenchendo minhas expectativas: “Se os homens pudessem entender o encanto de cada coisa, a vida seria digna de ser vivida. E a boa compreensão entre os povos talvez fosse uma palavra a riscar na lista das inatingíveis”.


Com uma letra miúda, Ana foi na mesma toada. “Os homens têm desprezado os deveres de conservar a vida, a liberdade e propriedade do próximo, e não cultivar a veracidade e a fraternidade. Em seus corações, há o abismo insaciável do egoísmo e do domínio absoluto (...) Ó se os homens compreendessem e sentissem o grande amor de Deus revelado na pessoa gloriosa de Cristo sobre a cruz, para trazer ao aflito e desesperado o conforto; ao humilhado e oprimido, a liberdade; ao faminto, sedento e triste, o alimento que dá vida, paz e alegria (...) Ele, o Redentor da humanidade, ensinou: ‘Amarás a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo’. Eis o único meio para trazer a felicidade ao mundo”.


A RESISTÊNCIA


Sobre a “felicidade”, Margarida escreveu, em 15 de dezembro de 1942, que a palavra poderia desaparecer do vocabulário. Mas logo deixou o coração falar alto e, comovida, bradou com sua caneta: “Mas, não! A felicidade não desapareceu nem desaparecerá do mundo”. Todo esse temor, explicou, ocorria porque “atualmente, o mundo se atropela com o rumor dos canhões, com a ferocidade das metralhadoras, com a destruição fantástica deixada pelos tanques à sua passagem”.


Com a letra bem desenhada, outro jovem escreveu em 12 de novembro de 1942: “Exibir força e coragem em circunstâncias excepcionais é acidente da vida. Realizar pequenos gestos, cumprir deveres humildes, ignorados, e encontrar nisso a grandeza moral, é o verdadeiro sentido da vida”. Quatro anos depois, já no final do curso, outro colega declarou, cheio de otimismo e poesia, mas quase prevendo a era das “fake news”: “Cada momento de nossa existência tem sua verdade própria. Como certas flores que têm o perfume que as distingue dentre as suas irmãs. (...) A verdade de hoje já não será verdade amanhã, como o perfume das flores de hoje já não será perfume ao nascer da próxima aurora!”


Mais adiante, Fábio arrematou, iluminando o caderno como a capa ensolarada. “Só o que se executa com amor e consciência, com fé e convicção, é justo e é perfeito. A comunhão entre o ideal e o trabalho constitui a forma mais elevada da vida e a única verdadeiramente digna de ser vivida”.


Bem no final, encontrei uma frase que me permitiu dar por encerrada a leitura (naquele momento, pois sempre me vejo retornando a ela) e me deitar, pois já era tarde da noite: “Um homem com sono não pensa.” Obedeci, sem pestanejar, mas também sem conseguir esquecer perguntas lançadas naquelas jovens memórias, que décadas depois seguem sem esperança de resposta. “Por que tanta desarmonia e lutas tremendas, que fazem o sangue humano tingir a terra e o mar?”

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(((Trechos)))


“Quando vemos a guerra que estraçalha corpos e almas, como se quisessem edificar uma nova civilização sobre um montão de ruínas, quando a fé e a crença, o amor à Pátria e à família são meras palavras para se dizer em discursos, nós pensamos que ninguém mais se entende e que se fala um idioma de ódio e vingança”

Rosamaria

Estudante de Direito da década de 1940, sobre os horrores do conflito global


“Vivemos eternamente insatisfeitos, procurando qualquer coisa para preencher o vazio doloroso que existe em nosso coração e nossa mente. Vivemos no temor contínuo da morte, e, o que é pior, no temor da dilacerante incerteza sobre o que há do outro lado da vida”

João

Estudante de direito da década de 1940, sobre a angústia da juventude durante a guerra


“Os homens têm desprezado os deveres de conservar a vida, a liberdade e propriedade do próximo, e não cultivar a veracidade e a fraternidade. Em seus corações, há o abismo insaciável do egoísmo e do domínio absoluto”

Ana

Estudante de direito da década de 1940, sobre o desprezo pela vida e pela liberdade em nível mundial


“Cada momento de nossa existência tem sua verdade própria. Como certas flores que têm o perfume que as distingue dentre as suas irmãs. (...) A verdade de hoje já não será verdade amanhã, como o perfume das flores de hoje já não será perfume ao nascer da próxima aurora!”

Henrique

Estudante de direito da década de 1940, sobre conservar a esperança em tempo de massacres

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