O Projeto Abadá Capoeira, fundado no Rio de Janeiro em 1987 e hoje presente em cerca de 80 países, chegou ao bairro São Cosme em 2014 crédito: Marcos Vieira /EM/DA. Press
No Bairro São Cosme, em Santa Luzia, onde antes havia apenas um terreno abandonado tomado por lixo e entulho, hoje ecoam os sons dos berimbaus, atabaques e pandeiros. É o chamado da capoeira que atrai crianças, jovens e adultos, curiosos ao passarem pela rua, despertados pela música que os convida a entrar. O espaço, que simbolizava o descaso e a falta de perspectivas, foi transformado pela associação comunitária e pelo mestre Lyssinho em um centro de cultura, educação e resistência – um lugar onde o ritmo dos instrumentos abre caminhos para novas histórias.
Quem se aproxima é primeiro tocado pelo som, mas logo descobre que ali há muito mais do que música. As rodas de capoeira, as oficinas de percussão e as cantigas ancestrais carregam valores de coletividade, identidade e pertencimento. O que começou como um terreno vazio hoje é a sede do Projeto Abadá Capoeira, referência de transformação social e cultural no bairro, onde o eco dos instrumentos virou convite à mudança de vida.
‘‘Eu era um jovem sem direcionamento, e aqui encontrei a orientação para seguir minha vida com empreendedorismo e trabalho social. Hoje estou prestes a abrir minha hamburgueria graças ao que aprendi aqui. A capoeira me ajudou tanto que sinto que devo retribuir’’ - Gabriela Moreira, Morador do Bairro São Cosme, 26 anos, e aluno do projeto Abadá Capoeira Marcos Vieira /EM/DA. Press
A força de um projeto
O Projeto Abadá Capoeira, fundado no Rio de Janeiro em 1987 e hoje presente em cerca de 80 países, chegou ao Bairro São Cosme em 2014. Desde então, tornou-se um dos principais motores de transformação social da região, oferecendo oficinas de capoeira, música e manifestações da cultura afro-brasileira, como jongo, maculelê e samba de cabula.
“Todos os exemplos que tive na minha vida vieram da capoeira, especialmente no âmbito familiar, com meus pais. Eles desenvolviam projetos sociais quando eu era criança, e aqueles ensinamentos, aquele senso de coletividade, foram me moldando e me formando. Entendi desde cedo que aquilo era importante, e esses valores eu carrego até hoje, transmitindo-os para a eternidade”, afirma Elisson Evandro Cruz Freitas, o instrutor Lyssinho, 37 anos, natural de Belo Horizonte e morador do Palmital, professor do Abadá Capoeira.
Instrutor Lyssinho, responsável pelo projeto abadá: novos caminhos para juventude Marcos Vieira /EM/DA. Press
Depoimentos que confirmam a mudança
Foi também pelo som que Gabriela Moreira, 19 anos, conheceu o projeto: “Iniciei em 2018, quando estava passando pela rua e ouvi o som dos atabaques. Senti algo diferente e quis participar. Na capoeira encontrei direcionamentos que não tive no meu convívio pessoal. Antes eu tinha muitos problemas emocionais, vivia em um ambiente de drogas, bebidas e preconceitos. A capoeira me transformou, abriu minha mente e hoje sou uma pessoa mais leve. Consigo lidar melhor com as situações, difíceis ou não, com os ensinamentos que o projeto Abadá me proporcionou.”
O mesmo aconteceu com Israel Oliveira, 26, também atraído pelo toque do berimbau. “Sempre tive afinidade com a capoeira, especialmente pelo som do berimbau. Desde que entrei, nunca mais saí. Eu era um jovem sem direcionamento, e aqui encontrei a orientação para seguir minha vida com empreendedorismo e trabalho social. Hoje estou prestes a abrir minha hamburgueria graças ao que aprendi aqui. A capoeira me ajudou tanto que sinto que devo retribuir. Por isso, iniciei também um projeto social, ensinando boxe em parceria com a associação, com as mesmas orientações que recebi como aluno da Abadá Capoeira.”
Resistência diante dos desafios
Manter o projeto vivo, no entanto, nunca foi simples. Os obstáculos vão desde a incompreensão até a falta de recursos. “Muitas vezes a criança ou o adolescente começava a participar, mas um líder religioso, o pai ou o avô, muito tradicionais, queriam tirá-lo porque não compreendiam o aspecto cultural da capoeira. Além disso, manter a cultura no Brasil, não só a capoeira, mas praticamente todos os grupos culturais, é um grande desafio”, reconhece Lyssinho.
Para a comunidade, no entanto, o resultado é inegável. Odilei Aurélio Cabral, liderança local, lembra como tudo começou: “No final de 2014, o mestre Lyssinho trouxe essa proposta pra nós, acreditamos nele e hoje, graças a Deus, temos esse sucesso no bairro. A capoeira não muda apenas a vida dos alunos, mas de toda a família. Quando eu era criança, não tive essa oportunidade, assim como muitos amigos. Hoje conseguimos oferecer isso e mudar a realidade de tantas crianças, adolescentes e até adultos. No São Cosme, principalmente, que é uma região carente. Não temos cultura, esporte ou lazer, e tudo o que acontece nesse sentido parte da associação.”
‘‘Antes eu tinha muitos problemas emocionais, vivia em um ambiente de drogas, bebidas e preconceitos. A capoeira me transformou, abriu minha mente e hoje sou uma pessoa mais leve’’ - Gabriela Moreira, Moradora do Bairro São Cosme, 19 anos, e aluna do projeto Abadá Capoeira Marcos Vieira /EM/DA. Press
O Bairro São Cosme, apesar da força de sua população, é historicamente esquecido pelo poder público. Não há equipamentos culturais ou esportivos estruturados, e o que existe nasce do esforço coletivo da associação e do Projeto Abadá Capoeira.
É por isso que o som dos instrumentos é mais que música: é sinal de resistência. No mesmo espaço que já foi depósito de lixo, agora há vida. O toque do berimbau abre a roda, o atabaque conduz o ritmo, o pandeiro marca o compasso, e juntos anunciam a possibilidade de transformação. “Manter a cultura viva é um desafio enorme no Brasil, ainda mais em áreas periféricas. Mas é aqui que a capoeira mostra sua força: ela resiste, transforma e abre caminhos para que cada criança, cada jovem, descubra que pode ser protagonista da própria história”, conclui Lyssinho, com a mesma firmeza de quem acredita que o som da capoeira é também o som da esperança.