Como o serviço de água e esgoto retratam exclusão em Minas
Núcleo de Dados do EM evidencia em série de reportagens os contrastes no acesso ao serviço essencial, a partir de famílias vulneráveis em BH e Norte do estado
Com 95% de sua população atendida, BH ainda tem áreas com esgoto a céu aberto,
como parte do Bairro São João Batista, onde moradores convivem com o mau cheiro - (crédito: Jorge Lopes/EM/D.A Press)
crédito: Jorge Lopes/EM/D.A Press
Levantamento feito pelo Núcleo de Dados do Estado de Minas, que resultou em uma série de reportagens, publicadas domingo (21/9), nesta segunda-feira (22) e nesta terça-feira (23), mostra como a desigualdade social se manifesta em nosso estado por meio do saneamento básico, um direito fundamental em tese garantido por lei, mas que na prática encara desafios manifestados pelos depoimentos de fontes e personagens ouvidos. As reportagens detalham a assimetria no acesso ao abastecimento de água, ao tratamento de esgoto e à drenagem e manejo das águas pluviais urbanas no estado
O material se divide a partir de três ângulos, em um contexto no qual o país tem o objetivo, segundo o Marco Civil do Saneamento aprovado em 2020, de fornecer abastecimento de água para 99% da população e esgotamento sanitário para 90% até 2033.
No especial, a reportagem mostra as famílias de BH que perdem o sono ao conviver com o esgoto dentro de casa durante as enchentes; a dificuldade para conseguir água potável em Cristália, cidade de 5 mil habitantes no Norte de Minas; e o imenso desperdício do líquido essencial à vida na distribuição feita por empresas privadas, públicas e autarquias responsáveis pela administração do setor.
No domingo, o EM abriu a série mostrando a realidade em Venda Nova, região de BH que historicamente sofre com as enchentes. Mesmo após obras contra as cheias na Bacia do Córrego do Nado, afluente do Vilarinho, a família Pereira, no Bairro Santa Mônica, não desgruda o olho da sub-bacia do Marimbondo a cada vez que o céu se fecha, diante da ameaça de chuva forte e do esgoto dentro de casa.
Ainda no domingo, a reportagem traz o bom exemplo de Capitão Enéas, no Norte do estado, onde a prefeitura local, com recursos do governo federal, conseguiu ampliar a oferta do saneamento básico para a maior parte de sua área urbana – apesar das dificuldades continuarem na zona rural.
Nesta segunda, o EM se volta à situação de Cristália, também na Região Norte, que não tem qualquer saneamento básico em sua área rural. Entre os depoimentos marcantes está o de Leila Ludmila. A família da mulher com deficiência física, que usa um quadriciclo adaptado para ajudar os parentes no cultivo de manga, precisa buscar o líquido fundamental para a vida do ser humano a uma distância de quatro quilômetros.
Já nesta terça-feira, a reportagem denuncia o desperdício de água nas cidades mineiras. Algumas delas chegam a perder cerca de 80% da produção durante a distribuição. O EM usa como exemplo Bocaiúva, também no Norte de Minas, onde mais da metade da água é perdida por falhas estruturais e de operacionalização, segundo dados do Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (Sinisa).
Líder comunitário Paulo Barzel: décadas de luta por saneamento em Venda Nova
Jorge Lopes/EM/D.A Press
Especialistas opinam
Rogério Siqueira, vice-presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), analisa com preocupação a apuração trazida pelo EM. "A questão do esgoto é a mais grave para mim, entre todas que vocês abordam neste especial. Digo isso porque estamos falando de um impacto direto na saúde da população. Temos diversos estudos que mostram que cada real investido em esgotamento representa um contingenciamento importante na saúde, de até quatro vezes. É um assunto muito sério, que estamos muito atrasados como sociedade", diz.
Para Rogério, os problemas trazidos na série são causados por diferentes fatores, mas, principalmente, pela falta de pessoal nos estados e prefeituras. "Uma cidade, para operar sozinha seu sistema, sempre vai ter mais dificuldade. O correto é estabelecer redes regionais, os consórcios. Isso é fundamental, porque o tratamento do esgoto traz um impacto exponencial para a população. Sem falar da questão ambiental, porque sem tratamento a degradação é muito maior", afirma.
Na mesma linha de Rogério, Uende Aparecida Figueiredo Gomes, doutora em Políticas Públicas e Gestão de Saneamento e professora do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Escola de Engenharia da UFMG, afirma que a falta de saneamento é um problema mundial com profundos reflexos também em Minas. Ela aponta para uma crise de gastroenterite no país, que tem como fator central o tema norteador da reportagem. “Trata-se de uma situação que tem uma relação muito próxima ao saneamento, em razão do ciclo ambiental das doenças, especialmente as infectocontagiosas”, diz.
“A gente tem avançado Censo a Censo (do IBGE), mas numa velocidade ainda muito aquém daquela que esperamos para um país que já foi considerado a sexta maior economia do mundo”, completa a especialista.
Uende Figueiredo ressalta ainda que no Brasil, por lei, o saneamento básico é definido em quatro componentes: o abastecimento de água potável; o esgotamento sanitário; o manejo de resíduos sólidos; e a limpeza urbana. Para a melhoria das condições da população, os avanços devem ocorrer nos quatro quesitos. "A gente precisa estudar as soluções tecnológicas para que consigamos ampliar acesso ao esgotamento sanitário também para as comunidades rurais", completa.
Também fonte do especial e com 49 anos de exercício da profissão no Norte de Minas, o médico clínico geral e infectologista João dos Reis Canela recorda que conviveu com índices elevados de doenças de veiculação hídrica durante a vida, principalmente devido às más condições de saneamento em pequenas comunidades, como acontece em Cristália, tema da reportagem do EM de amanhã.
“Em janeiro de 1976, quando iniciei a minha prática em Varzelândia (hoje com 18,8 mil habitantes), entre outras questões básicas, a falta quase total de saneamento resultava em doenças graves de etiologia viral, bacteriana, helmintíases e outras parasitárias, todas elas relacionadas à falta de saneamento”, afirma.
Entre as doenças de veiculação hídrica ainda existentes, ele cita a hepatite-A e a leptospirose. “Uma torneira com água tratada em um lar tem mais impacto na saúde de uma criança do que qualquer outro avanço tecnológico”, diz João dos Reis Canela.