Travessia perigosa: homem cruza quatro pistas onde os carros passam a mais de cem quilômetros por hora - (crédito: Júlio Moreira/EM/D.A Press)
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A cena se repete todos os dias no km 16 da MG-10, diante da imponência de concreto da Cidade Administrativa: homens e mulheres, estudantes apressados, pais e mães de família, moradores do distrito de São Benedito, cruzam quatro pistas onde os carros passam a mais de cem quilômetros por hora para chegar do outro lado, em direção à sede do governo estadual. O asfalto, ali, já não é apenas via de trânsito. É um campo minado.
Desde 2007, foram 33 mortos nesse trecho. Outras dezenas sobreviveram, mas com sequelas que carregam como cicatrizes do descaso. O morador do distrito e líder comunitário Fernando de Castro, que há quase duas décadas insiste na construção de uma passarela, define o ato de atravessar como um mergulho no acaso: “Todos os dias estudantes, pais e mães de família se arriscam para chegar do outro lado. É uma roleta-russa.”
Entre os que sabem da dor está Dona Antonia Maia, moradora do São Benedito há 40 anos. Ela viu dois primos partirem em apenas três meses, ambos esmagados pelo trânsito veloz. O primeiro tinha 17 anos, o segundo, 35. Os dois iam trabalhar. “Precisamos dessa passarela, não custa nada para o Estado. O que é essa obra para o governo? Para nós vale a vida da nossa gente. Imagina o que é perder dois parentes em um prazo de três meses. É muita dor. Não podemos continuar perdendo nossos amigos e nossos familiares”, diz, com a voz engasgada.
A ausência da passarela obriga muitos a buscar a única alternativa que existe para chegar do outro lado: o viaduto Agostinho Patrus. Ali, contudo, a travessia não se dá em paz. Sem guarda-corpo e sem passeio, o pedestre caminha rente ao fluxo de carros e caminhões. Michele Pereira, 26 anos, moradora do bairro Palmital, sabe o peso desse caminho: “Passar aqui no viaduto é um risco enorme. Trabalho na Cidade Administrativa e enfrento esse perigo todos os dias. O viaduto não tem proteção para pedestre e passo muito perto dos carros.” Quando perguntada se já atravessou a MG-10 entre os carros em alta velocidade, responde com firmeza: “Não tenho coragem. Nunca atravessei. Mas já presenciei vários atropelamentos aqui no viaduto.”
Em 2012, Fernando de Castro decidiu transformar a indignação em denúncia formal. Levou o caso ao Ministério Público. A promotora Marta Alves Larcher, após constatar a veracidade dos óbitos — conferiu boletins de ocorrência que comprovam as mortes — ajuizou uma ação civil pública exigindo do Departamento de Estradas de Rodagem (DER/MG) a construção imediata da passarela. O próprio Fernando guarda, até hoje, um dossiê que registra os 33 óbitos. O órgão contestou, recorreu em primeira e segunda instância. Perdeu as duas. Hoje o processo está na terceira instância. “Se trabalhou na Justiça para não salvar vidas”, acusa Castro.
Duas passarelas a apenas 400 metros uma da outra
A contradição salta aos olhos. Na mesma época em que elevou a velocidade da via de 80 para 110 km/h, o DER ergueu duas passarelas a apenas 400 metros uma da outra no km 14, na altura do bairro Canaã — que então contava com 5 mil habitantes. Já o São Benedito, com mais de 30 mil moradores, segue sem nada no km 16. “Como podem ter feito isso? Se fosse na Zona Sul da capital, essa passarela já estaria pronta”, desabafa.
Castro suspeita de outra razão para construção da passarela. Uma razão que não se mede em estatísticas, mas em vaidade arquitetônica. Ele acredita que o temor das autoridades é que uma passarela atrapalhe a estética do conjunto projetado por Oscar Niemeyer para a Cidade Administrativa. “É inacreditável: vidas estão sendo sacrificadas em nome da estética de um prédio”, dispara.
E assim o impasse se arrasta. Entre o silêncio dos órgãos públicos e a alta velocidade dos motores, o risco permanece, diário, banalizado.
O povo do São Benedito aprendeu a atravessar a MG-10 com a mesma cautela com que se manipula uma arma carregada. Cada passo é uma aposta. Cada chegada ao outro lado, uma vitória.
No último dia 22 de julho, na tentativa de romper a indiferença, Fernando escreveu uma carta ao governador Romeu Zema. Pedia que determinasse a obra, encerrando a disputa judicial. A carta ficou sem resposta.
A falta da passarela obriga moradores do bairro São Benedito, em santa luzia, a recorrer ao viaduto para atravessar a rodovia. A estrutura, no entanto, não oferece condições seguras de passagem. Sem guarda-corpo e sem calçada para os pedestres, o que resta é caminhar lado a lado com carros
Júlio Moreira/EM/D.A Press
O que diz o DER
O DER-MG publicou, no dia 13 do mês passado, o edital de licitação para a execução de obras de implantação de passarela em frente à Cidade Administrativa, no km 15,8 da MG-010. Após questionamento de uma empresa interessada no certame, o Departamento decidiu por alterar o tópico citado e, no momento, realiza os ajustes no edital. A nova data de abertura das propostas passa a ser 10 de novembro deste ano.