A corujinha murucutu jurema encontrou refúgio no criatório
Jurema, uma coruja murucutu, com as duas asas amputadas. Cleiton, um tamanduá-bandeira manco. Kiara, uma loba-guará com apenas três patas. Chefinha, uma macaca cuxiú-de-nariz-branco que passou a vida no cativeiro. Pitica, filhotinha de anta que perdeu a mãe contaminada por agrotóxicos. Esse pitoresco e sofrido grupo está entre os quase 150 animais que vivem às margens do Rio Cipó, na zona rural de Presidente Juscelino, a cerca de 40km de Curvelo, na Região Central de Minas, em um criatório conservacionista batizado de Santuário da Onça-Pintada.
Com 287 hectares, o criatório, implantado em pleno Cerrado mineiro abriga animais expulsos de seus biomas pelo avanço da monocultura e da urbanização, além de vítimas de atropelamento, maus-tratos e, principalmente, do comércio ilegal que retira anualmente milhares de exemplares da fauna brasileira.
São 146 animais de 54 espécies, a maioria nativa, muitas delas ameaçadas de extinção, vivendo no santuário mantido há cinco anos pelo casal Gil Vale, de 49 anos, e Karine Pantusa, de 40. Ele é perito judicial, ela, arquiteta.
Todos os bichos foram resgatados por órgãos ambientais e entregues aos cuidados do santuário para ter uma condição digna de vida, ainda que em cativeiro, e quem sabe formar uma unidade familiar que garanta o futuro das suas espécies, principalmente das ameaçadas de desaparecer da Terra pela ação de um outro animal: o homem.
“É importante destacar que a gente não tira nenhum animal da natureza. A gente só recebe animais que não têm para onde ir, que não podem voltar para a natureza ou de projetos ex situ, termo usado para designar a reprodução e conservação de espécies fora de seu ambiente natural”, destaca Gil. Apaixonado desde pequeno pela fauna, especialmente a silvestre, ele comprou a propriedade em 2018 para transformá-la em um criatório conservacionista.
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A maioria dos animais do Santuário da Onça-Pintada não terá oportunidade de voltar para seu habitat natural, já que, por terem passado a vida toda em cativeiro, não sabem viver livremente, ou foram vítimas de algum tipo de violência que os incapacitou para viver em seu habitat natural, conta Gil. Juntamente com sua esposa, ele mantém o santuário com recursos próprios, em uma estrutura criada especialmente para garantir o bem-estar dos animais.
Karine e gil se dedicam há cinco anos ao criatório e buscam parceiros para dividir custos
VOLTA À NATUREZA
“Nesse caso, o que fazemos aqui é um seguro genético do animal. No hora que ele acabar lá fora, teremos a espécie aqui para, com o tempo, reintroduzi-la na natureza”, afirma Gil, lembrando que essa é a situação do casal de onças-pintadas do Cerrado, Tarik e Odara. Oriunda de um criatório em Goiás, a dupla se reproduziu no santuário, e hoje tem dois filhotes, Perseu e Afrodite.
No caso dos filhotinhos, eles devem passar a vida no criatório, já que a mãe não sabe caçar e, consequentemente, não consegue ensinar os filhos a fazê-lo. Além disso, conta Gil, ameaçadas pelo desmatamento e urbanização, as onças, que ocupam o topo da cadeia alimentar, acabam não tendo como se alimentar na natureza e passam a predar animais domésticos, virando alvo de caçadores.
O nome do criatório, conta Gil, é uma homenagem a essa espécie, uma das mais ameaçadas de extinção. A população de onças-pintadas no Cerrado brasileiro, um de seus principais biomas, é estimada em cerca de apenas 250 indivíduos. No local, o casal mantém oito onças, seis delas pintadas, incluindo os dois filhotes, e duas pardas.
“O nome 'Santuário’ remete a um lugar de paz. E resolvemos batizar o criatório como Santuário da Onça-Pintada porque ela é o carro-chefe do projeto, importantíssimo para Minas Gerais. A onça do Cerrado está desaparecendo, ela é hoje a espécie de onça mais ameaçada de extinção no Brasil”.
NOVA FAMÍLIA
Caso também de Cleiton, o tamanduá-bandeira, atropelado em uma rodovia paulista, que ficou manco e não tem como viver em seu habitat natural, mas que no Santuário da Onça encontrou uma companheira, Isabel. A fêmea veio de um zoológico de São Paulo, e os dois formaram uma unidade familiar.
Recentemente, o casal teve dois filhotes: Zara e outro, que nasceu semana passada, cujo sexo ainda é desconhecido. Até completar 30 dias, ninguém pode se aproximar do filhote, para evitar que ele seja rejeitado pela mãe devido ao risco de contaminação por cheiros estranhos. Durante a visita da reportagem, a família de tamanduás-bandeira, animal de hábito noturno, dormia tranquilamente em uma casinha de pedra, construída especialmente para ela.
EXÓTICO
O Santuário da Onça abriga também um tigre siberiano, vindo de um zoológico que decidiu descontinuar a manutenção de felinos. “Perguntaram se eu tinha como receber esse tigre já idoso. Como dizer não?”, questiona Gil, que acolheu o animal bastante debilitado e o rebatizou de Shere Kan, mesmo nome do injustiçado tigre vilão do filme “Mogli, o Menino Lobo”.
Com cerca de 300 quilos e uma pelagem agora brilhante e bem-cuidada, Shere Kan come de oito a nove quilos de carne de boi por dia e vive em um dos maiores recintos do santuário, de 680 metros quadrados, com cascata e parede de vidro, o que permite que o animal seja admirado de perto. Em sua moradia anterior, Shere Kan vivia confinado em uma área de 60 metros quadrados. Segundo Gil, a reprodução de tigres em cativeiro no Brasil atualmente é proibida pelos órgãos ambientais, por isso “90% dos animais dessa espécie são idosos”. A maioria, conta, era de circos e foi criada e reproduzida para fins de entretenimento.
Para receber essa espécie, que não faz parte da fauna nacional e não pode, por determinação dos órgãos ambientais, se reproduzir no país, ele teve que tirar uma licença de mantenedor de fauna exótica. A média de vida de um tigre-siberiano em cativeiro é cerca de 20 anos, mas a esperança de Gil e Karina é que Shere Kan rompa essa estatística. Além de comer carne diariamente, Shere Kan toma suplementos vitamínicos e faz limpeza regular na dentição. “Aqui os animais são todos tratados com muito carinho e cuidado”, destaca Karina.
Filhote de anta que morreu envenenada, pitica deverá formar família no projeto
É o que não falta aos filhotes de anta, Pitica e Vandinho. Os dois perderam as mães, vítimas de agrotóxicos no Centro-Oeste do país, e hoje são criados juntos para futuramente formar uma unidade familiar.
Kiara, a loba-guará que perdeu uma das pernas, já tem sua família. Depois de passar pelos cuidados do Santuário, ela teve um filhote com Lobão, que veio de um outro criatório. Juntos, correm pelo recinto construído especialmente para ela, com direito a pés de lobeira (Solanum lycocarpum), planta nativa do Cerrado, conhecida por ser o alimento preferido do lobo-guará.
A expectativa de Gil é futuramente reintroduzir o filhote em seu habitat natural, já que o Santuário está localizado no chamado corredor do lobo-guará. Kiara e Lobão não terão essa oportunidade. Já pensando na soltura do filhote, o recinto foi construído mais ao fundo da propriedade para que o animal possa ir aprendendo a viver por conta própria, quando estiver mais preparado.
ASAS DA LIBERDADE
Algumas araras-azuis, uma espécie também ameaçada de extinção, já são vistas cruzando o céu do Santuário. São animais resgatados do tráfico, que foram soltos depois de passar por cuidados, mas que vivem rondando o recinto das araras que ainda seguem em cativeiro, esperando sua hora de ganhar os céus. Entre elas, está um casal dessa espécie com o peito pelado.
Devido ao estresse do cativeiro onde viviam, os animais arrancaram as penas do peito, que já começaram a nascer novamente. Além de serem capturadas e mantidas em cativeiro, a araras-azuis ainda enfrentam, segundo Gil, a destruição de sua principal fonte de nutrição, a palmeira licuri, que ele está plantando no local para garantir alimento para as aves já soltas.
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O Santuário faz parte do projeto Áreas de Soltura de Animais Silvestres (Asas), uma parceria entre o Instituto Estadual de Florestas (IEF) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis ( Ibama), que visa identificar e cadastrar propriedades rurais aptas para a soltura de animais silvestres reabilitados.
Ele se prepara para receber nos próximos dias um bicho-preguiça que teve que amputar as mãos, queimadas em um rede de alta-tensão, e dez jacarés, resgatados do tráfico ilegal. Os recintos que vão abrigar as duas espécies já estão em construção.
CUSTO COM ALIMENTAÇÃO
A alimentação é um dos desafios do Santuário, que consome por semana cerca de 80 quilos de verduras, legumes e carnes, fora a ração, suplementos alimentares, remédios e vermífugos. Os produtos são adquiridos em Curvelo, a 45km de distância, e preparados em uma cozinha impecável, com reluzentes vasilhames de alumínio, para evitar contaminação. Rações são etiquetadas e armazenadas com esmero.
Gil busca de parceiros para ajudar a bancar os custos. Só o tigre, detalha, consome cerca de R$ 9 mil por mês em alimentação. E está plantando, por exemplo, embaúba, que serve de alimento para pássaros e macacos. Duas mil mudas de espécies de árvores da flora nativa que podem servir de alimento para os animaisjá foram plantadas. O foco é obter patrocínio, mas doações são bem-vindas. “Podemos receber, por exemplo, frutas com algum machucadinho ou muito maduras, que não servem para a venda”.
Tráfico e morte
Entre 2015 e 2021, foram apreendidos cerca de 13 milhões de espécimes de fauna e flora silvestres em 162 países, de acordo com dados do Relatório Global sobre Crimes contra Espécies Silvestres. Em torno de 90% desses animais traficados morrem antes de chegar ao destino final.