Os pais de um menino de 11 anos com Transtorno de Espectro Autista (TEA) e uma escola particular de Belo Horizonte geraram uma disputa que já envolve o acionamento do Ministério Público de Minas Gerais e o registro de Boletim de Ocorrência. Isso, porque o garoto, que já estudava há 8 anos na instituição, teve a rematrícula para 2026 negada. O mesmo ocorreu com a irmã dele, de 8 anos, dos quais passou 5  frequentando o mesmo educandário. Os genitores alegam discriminação devido à condição da criança, o que o colégio nega.

"Na sexta-feira retrasada nós pagamos a matrícula, mas, na segunda-feira, a escola nos chamou para conversar, e, na terça-feira, informaram que não iriam aceitar a matrícula nem dele, nem da minha outra filha", explica Thiago Lanza, pai das crianças. Para ele, a decisão é motivada pelo despreparo da escola para lidar com jovens com TEA. "Procuramos um advogado, vamos entrar com uma liminar pedindo a matrícula, vamos entrar com uma ação penal e cível", afirma o pai.

Lanza relata ainda que o filho vinha sendo tratado de maneira inadequada pela instituição de ensino. "No ano passado, teve uma situação mais grave: durante uma crise de TEA, nosso filho começou a gritar muito, chorar muito, e a professora gravou um áudio dele fazendo isso. Depois que ele já tinha se acalmado, ela mostrou esse áudio para toda a sala. Ele ficou extremamente constrangido, envergonhado, porque isso é uma coisa já do autismo; pós-crise, ele sempre fica muito envergonhado."

A situação escalou no último mês de agosto, quando, segundo os pais, o menino chegou da aula com marcas no braço. "Ele estava com duas blusas de frio. Na hora em que a gente questionou o que tinha acontecido, ele contou tudo. E, para mim, foi a gota d'água, porque uma agressão é uma coisa muito séria", diz o pai. "A gente fez o boletim de ocorrência", complementa.

Porém, apesar das queixas, o pai planejava manter o filho no colégio. "Ele é uma criança autista, que está lá desde 2 anos de idade. Então, qualquer mudança de rotina para um autista é muito complexa e muito doída. Os vínculos de amizade todos dele vieram de lá", justifica Lanza.

Além disso, o genitor destaca a localização da instituição. "Tanto a mãe quanto eu trabalhamos, e a escola fica próxima à casa da mãe. Então, a avó que fica com os meninos durante o dia leva e busca com facilidade; se tem alguma crise, ela consegue se deslocar rapidamente", acrescenta.

Por fim, Lanza destaca a dificuldade em encontrar colégios dispostos a acolher estudantes com TEA. "Nós sabemos que as escolas particulares, em geral, não estão preparadas e não têm interesse em se preparar para cuidar de uma criança assim", opina. "Se eu tiver que mudar para outra (escola) que vai me dar problemas logísticos e de adaptação para o meu filho, eu o mantenho onde tenho essas facilidades", conclui.

O que diz o colégio

O colégio em questão é o Instituto Educacional Manoel Pinheiro (Iemp), localizado no Bairro Guarani, na Região Norte de Belo Horizonte, que, por sua vez, nega discriminação. Em contato com o Estado de Minas, a escola afirmou que houve uma quebra de confiança por parte dos pais, que não se envolveram no processo educacional, situação prevista no Regimento Escolar da instituição.

De acordo com Bruno Lyra, diretor administrativo e financeiro do Iemp, os pais teriam afirmado, em reunião, que não confiam no ensino praticado e que o filho não estaria seguro dentro da instituição. "Se não há vínculo de confiança, não existe o ato da educação", disse. "Se você não confia no trabalho, como você acredita nos professores e nos funcionários?", questiona.

A reportagem teve acesso ao regimento em questão. O colégio se baseia em um parágrafo único, que diz: "a escola se reserva o direito  de rejeitar a matrícula, mesmo em renovação, de qualquer candidato, por incompatibilidade e desarmonia com o regime disciplinar e administrativo, na faixa etária superior a dois anos na respectiva série".

A instituição alega ainda ter documentos comprovando essa quebra, incluídos em aproximadamente 50 atas de reuniões realizadas com os familiares do menino. Esses documentos teriam sido analisados por um comitê, que, então, teria decidido por não permitir a rematrícula dos estudantes. "O regimento mencionado ofereceu respaldo legal e ético à decisão do comitê", pontua o diretor.

Ainda segundo o Iemp, o fato de o aluno ter estudado 8 anos no local, além da negativa para renovar a matrícula da irmã dele, que não é atípica, seriam outros indícios de que a decisão não foi movida por discriminação. A instituição também nega que tenham ocorrido agressões. De acordo com o Iemp, durante o tempo em que permaneceu matriculado, o aluno teria apresentado várias crises, algumas delas enérgicas, e, quando precisou ser contido, o procedimento teria ocorrido sem uso de violência.

Outro ponto salientado pela escola é que, dos cerca de 1.000 alunos matriculados, aproximadamente 70 têm necessidades especiais comprovadas por laudos médicos: desses, 21 são autistas. Por fim, o Iemp salientou que a decisão de não renovar a matrícula dos estudantes é definitiva e está disposta a defendê-la judicialmente, se for o caso.

O que diz a lei?

A reportagem ouviu também a advogada Michelle Higino, especialista em Direito Civil. Ela destaca que existem muitas questões envolvidas, e que todos eles serão consideradas antes da tomada de uma decisão judicial. "A gente tem que entender sempre os casos concretos a respeito do assunto, porque a gente precisa que a discriminação não seja banalizada", sintetiza.

Primeiramente, a jurista esclarece que a matrícula de crianças e adolescentes com TEA ou outros tipos de atipicidades é assegurada por lei. "Questões a respeito de qualquer ato discriminatório quanto a qualquer deficiência, ou espectro, ou a algo que cause uma diferenciação de necessidade, inclusive de educação ou de acompanhamento dentro da escola, como uma recusa de qualquer natureza, isso se caracteriza como ato discriminatório", esclarece Higino.

A advogada cita uma série de legislações que amparam a aceitação de crianças com transtornos ou deficiências na rede escolar, como a Lei Brasileira de Inclusão, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a própria Constituição Federal, que já assegura o direito universal à educação. "Uma recusa de matrícula a um aluno autista pode configurar, sim, um crime de discriminação, além de gerar danos morais para a família", explica a especialista.

Por outro lado, ela pondera que a recusa de uma matrícula, por si só, pode não configurar um ato preconceituoso, dependendo das circunstâncias. "Sempre o caso concreto deve ser considerado, principalmente se há um desgaste, como me parece, das relações entre os genitores e a escola", avalia.

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