Tudo começa com um convite por SMS para tomar um café, depois um encontro entre ruínas de edifícios e uma quantia em dinheiro muda de mãos. Assim, e apesar da guerra, é como o Hamas continua pagando os salários dos funcionários do governo de Gaza.
Quase dois anos depois do início da guerra, Israel aplicou duros golpes ao grupos islamista e continua perseguindo os membros e combatentes do movimento palestino que tomou o poder em Gaza em 2007.
A ofensiva israelense neste território, em represália ao ataque islamista de 7 de outubro de 2023, deixou dezenas de milhares de mortos e uma catástrofe humanitária denunciada por diversas ONGs e pela comunidade internacional.
Mas, apesar da destruição, os testemunhos coletados pela AFP — todos citados por meio de pseudônimos — confirmam que, embora com atrasos e de forma parcial, os funcionários continuam recebendo seus salários.
Karim, de 39 anos, funcionário do Ministério de Obras Públicas, conta que em julho recebeu uma mensagem de texto em seu celular com a seguinte frase: "Fulano o convida para tomar um café", com a hora e o local, perto de uma escola que abriga pessoas deslocadas.
"Fui. Estava com muito medo de um bombardeio. Um funcionário conhecido estava me esperando e me entregou 1.000 shekels [moeda israelense que circula em Gaza, equivalente a US$ 300 ou R$ 1.625,80, na cotação atual]", diz ele, detalhando que este valor é apenas uma parte de seu salário, que antes da guerra chegava a 2.900 shekels.
- "Escapei da morte" -
Ala, professora em uma escola pública da Cidade de Gaza, teve o seu último salário pago no final de junho, quando recebeu uma mensagem de texto instruindo-a a comparecer a uma escola abandonada que abrigava deslocados.
"A escola acabara de ser bombardeada e o funcionário encarregado de distribuir os salários havia fugido. Graças a Deus eu cheguei tarde e escapei da morte", relata, explicando que teve que voltar ao local no dia seguinte para receber o pagamento.
O Exército israelense ataca regularmente escolas abandonadas que servem como centros de acolhimento de deslocados, argumentando que o Hamas ou outros grupos instalam bases ou postos de comando nestes locais.
Antes da guerra, o número de funcionários governamentais na Faixa de Gaza era estimado em 40 mil.
Para o funcionamento do governo, o Hamas dependia das receitas de tarifas e taxas, como o imposto de renda, taxação ao comércio e aos serviços municipais.
A partir de 2021, em virtude dos acordos negociados para evitar uma escalada entre o movimento islamista e Israel, o Catar — onde está situada a direção do Hamas no exílio — incrementou seu apoio financeiro à Gaza para até um milhão de dólares diários para pagar salários de funcionários e subsídios a famílias pobres.
Mas as transferências cessaram após o ataque de 7 de outubro.
- Nos túneis -
Dirigentes do Hamas, cujas fontes de financiamento não são transparentes, afirmaram antes da guerra que recebiam apoio econômico do Irã, algo que o país nunca confirmou.
Em fevereiro de 2024, o Exército israelense publicou quatro vídeos de cofres e sacos com notas de shekels, dólares americanos e dinares jordanianos, afirmando que as descobertas ocorreram em túneis sob Gaza, junto com documentos sobre transferências iranianas.
Segundo uma fonte próxima ao funcionamento na Faixa, o Hamas obtinha dinheiro principalmente através de contrabando pelos túneis escavados perto da fronteira ou por via marítima, burlando o bloqueio israelense.
Jamil, de 43 anos, contador em uma instituição governamental, assegura que o grupo islamista "armazenou centenas de milhões de dólares em túneis ou lugares seguros para épocas difíceis como a guerra", sem fornecer mais detalhes.
"O Exército israelense bombardeou bancos pertencentes ao Hamas, lugares onde o dinheiro era guardado, e assassinou responsáveis pelo sistema financeiro, mas isso não interrompeu o processo", conta.
Alguns funcionários de alto escalão recebem seu salário em segredo em suas residências ou em campos e escolas de abrigam deslocados, "para não estarem expostos a bombardeios", segundo uma fonte do movimento islamista.
- Processo complexo -
Jamil explica que o processo de pagamento de salários é "muito complexo" e muda dependendo da situação de segurança.
Um dirigente do Hamas baseado em Doha afirma que a organização "se empenha em pagar uma parte dos salários assim que dispõe de fundos".
Mas os funcionários entrevistados pela AFP ressaltam que seus salários não são suficientes, dadas as duríssimas condições de vida em um território que, segundo a ONU, sofre de fome extrema. Outros reclamam que apenas os funcionários simpatizantes do Hamas recebem dinheiro.
Massud, oficial de polícia, conta que recentemente recebeu um SMS no celular de sua esposa convidando-o para tomar um chá. Sua esposa ficou surpresa, mas ele sorriu e disse: "É uma boa notícia, chegou o salário".
Abdallah, professor de 38 anos, que recebeu seu último salário em julho, relatou que naquele dia "me despedi de minha esposa e de meus filhos sem dizer a eles que estava indo buscar meu pagamento. É como se eu trabalhasse para a máfia", lamenta.
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