CRIANÇAS E DROGAS

Para jovens, tráfico não é crime, mas trabalho, diz juíza do Rio

Vanessa Cavalieri considera que um dos maiores fracassos do Estado brasileiro: a incapacidade de oferecer escola e emprego que disputem espaço com o crime

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "O tráfico, para esses meninos, não é crime, é trabalho", afirma Vanessa Cavalieri, juíza da 1ª Vara da Infância e Adolescência do Rio de Janeiro -a única da capital fluminense responsável por julgar crimes cometidos por adolescentes. 

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Para ela, a frase resume um dos maiores fracassos do Estado brasileiro: a incapacidade de oferecer escola e emprego que disputem espaço com o crime. 

A recente operação policial no Rio de Janeiro retomou o debate sobre o recrutamento de adolescentes pelo crime organizado. Após a ação da polícia, 121 pessoas morreram, entre elas dois adolescentes de 14 e 17 anos. Além disso, entre a mais de centena de presos, dez menores de 18 anos foram apreendidos. 

Há dez anos à frente da vara, Cavalieri vê o envolvimento precoce de adolescentes no tráfico como resultado de uma sucessão de falhas estruturais: abandono escolar, desemprego, ausência paterna e falta de políticas que garantam renda e formação profissional. 

Na avaliação da juíza, o problema começa ainda antes do nascimento, com a ausência de planejamento familiar. Ela destaca que 95% dos adolescentes que chegam à vara têm pai ausente. "Não adianta ter o nome na certidão se ele nunca viu o pai. Se o pai nunca apareceu, ele não tem pai." 

Juíza Vanessa Cavalieri, do Rio de Janeiro, na Bienal do Livro, em junho de 2025
Juíza Vanessa Cavalieri, do Rio de Janeiro, na Bienal do Livro, em junho de 2025 Eduardo Anizelli/Folhapress

Falar sobre a falta dessa figura paterna, segundo Cavalieri, continua sendo um tabu social, mas demonstra como a sobrecarga recai quase sempre sobre as mães -responsáveis sozinhas pela criação dos filhos, muitas vezes sem rede de apoio. 

"Cadê esse pai que não está enterrando o filho, que não vai visitar na cadeia, que não é chamado na escola? A responsabilidade não é só da mãe", completa. 

A juíza analisa que uma criança que nasce em uma família que não planejou aquela chegada já nasce em risco. Muitas vezes, trata-se de um núcleo empobrecido, sem acesso à educação formal e sem emprego fixo. Além da falta de preparo emocional, faltam recursos materiais para garantir o cuidado da criança. 

A magistrada chama de distorção o argumento, presente nas redes sociais, de que essas mães têm muitos filhos por causa do Bolsa Família. "Na maioria das vezes, essa mulher nem recebe o benefício. Quando o filho sai da escola e vai para o tráfico, o Bolsa Família é cancelado." 

Para Cavalieri, a ausência de políticas públicas efetivas faz com que o tráfico se torne a única estrutura que oferece pertencimento e renda. "O tráfico usa adolescentes porque é uma mão de obra barata, fácil de repor e que não precisa de qualificação. É exploração de trabalho infantil", afirma. 

Ao entrar no tráfico, os adolescentes passam a ocupar funções como a de vapor, responsável pela venda de drogas no varejo, e a de radinho, que avisa sobre a chegada da polícia nas favelas. As jornadas chegam a 12 horas diárias e pagam pouco -a juíza cita que jovens que atuam como radinho recebem R$ 200. Ou seja, o sonho de enriquecimento rápido não se confirma. 

Cavalieri afirma que, quando o adolescente chega à vara, ele já passou por uma sequência de abandonos. Ela cita a falta de creche, o fracasso escolar e a ausência de políticas de assistência e saúde. "Abandonou a escola, na semana seguinte entra no tráfico." 

Para a parcela que entra no tráfico, as medidas socioeducativas, quando bem aplicadas, têm um efeito importante na reedução, avalia Cavalieri. 

"Quando o adolescente é apreendido, é um momento de todo mundo aterrissar. É um choque de realidade para ele e para a família." 

"[Existe] a ilusão de que o tráfico é uma irmandade e ele vê [quando apreendido] que isso é uma ilusão, não tem irmão. Ninguém visita na cadeira, ninguém ajuda a mãe com passagem para visitá-lo. Há uma compreensão de que errou, vê o sofrimento da mãe." 

Para a magistrada, este é um momento em que o Estado deve agir. "É uma janela de oportunidade de entrarmos ali com assistência, profissionalização, educação e falar 'você viu que isso é uma droga, mas não precisa seguir nesse caminho'." 

Por outro lado, prossegue, "não temos nada a oferecer em troca". "Eles pedem para que eu arranje um jovem aprendiz, mas eu sei que para 90%, eu não vou conseguir." 

Além desse desafio, a juíza afirma que muitas escolas não querem a presença daquele jovem. "Ao invés de incluir, não querem. Mesmo que eu consiga mandar um ofício, e ele é matriculado, como vai ser recebido nessa escola? [Imagina] o tanto que vai ser feito para excluir e forçar que ele abandone novamente?" 

A juíza também aponta o fracasso da escola em evitar o ingresso desses jovens no crime. "A escola brasileira está ultrapassada. O ensino médio é feito para quem vai fazer faculdade, mas esse menino quer trabalhar logo. Ele quer ser barbeiro, cozinheiro, eletricista -e o sistema não dá essa chance." 

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Segundo ela, também há exclusão na busca por trabalho. A juíza cita o caso de uma menina que vivia em um abrigo e não conseguia emprego. "Mudaram o endereço de um bairro pobre para um bairro nobre, e em dois dias ela recebeu 32 convites de emprego. O mesmo currículo, a mesma menina. Só mudou o CEP." 

Por isso, Cavalieri afirma que o enfrentamento ao problema depende do engajamento coletivo. "Achar que o Estado vai dar conta sozinho é um engano. Países ricos não dão conta sem a ajuda da sociedade. O empresário precisa entender que o jovem da comunidade é responsabilidade dele também."

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