ARTIGO

Agosto Lilás: com a mão erguida contra a violência

Quando a Justiça reconhece a violência, mesmo quando ela não deixa hematomas, envia um recado claro: a mulher não está sozinha. Ela tem nome, tem voz, e tem pro

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Marcelo Santoro Almeida
Professor de Direito da Família da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Rio

Agosto é roxo, mas a dor que ele representa muitas vezes é invisível. A campanha “Agosto Lilás”, criada para conscientizar sobre a violência doméstica, oferece muito mais do que alertas sobre um problema social: convida o Estado, a Justiça e a sociedade a olharem com atenção para as feridas que não deixam marcas visíveis, mas que dilaceram vidas silenciosamente. E, nesse contexto, o Direito de Família tem um papel essencial – e ainda pouco compreendido.

A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) é a espinha dorsal da proteção às mulheres em situação de violência doméstica. Reconhecida internacionalmente como uma das legislações mais avançadas, ela vai muito além do aspecto penal. Seus reflexos se irradiam para o campo cível, especialmente nas disputas por guarda de filhos, fixação de alimentos e definição do foro competente nas ações judiciais.

Mas antes de falarmos sobre leis, precisamos olhar para quem está dentro desse ciclo: muitas mulheres não se reconhecem como vítimas. Algumas acreditam que provocaram o agressor. Outras, que a violência faz parte da rotina familiar. E não são poucas as que sentem culpa por buscar ajuda. Segundo relatório citado na Wikipédia, cerca de 21% das vítimas não denunciam a violência por preocupação com os filhos – seja pelo medo de perder a guarda, seja por não saber como sustentá-los sozinhas. Um dado duro, que escancara o peso das amarras psicológicas e financeiras envolvidas.

A aplicação da Lei Maria da Penha no Direito de Família não é novidade. Medidas protetivas de urgência podem incluir o afastamento do agressor do lar, a proibição de contato com os filhos e até a suspensão da autoridade parental. Em ações de guarda, alimentos ou dissolução de união estável, o foro competente – diferentemente do que se pensa – não é, por padrão, o do réu, mas sim o domicílio do guardião de filhos menores, o último domicílio do casal, ou, em caso de violência doméstica, o da vítima. É o que estabelece o art.?53 do Código de Processo Civil (fonte).

Essa regra protege a mulher de deslocamentos físicos e emocionais que muitas vezes são usados como instrumentos de opressão judicial. Evita que ela tenha que litigar em territórios escolhidos pelo agressor – mais distantes, mais hostis, menos acessíveis.

Em 2023, o legislador deu um passo importante ao sancionar a Lei 14.713/2023, que trouxe mudanças relevantes no Código Civil e no Código de Processo Civil. A principal inovação está no §?2º do artigo 1.584 do Código Civil, que agora diz expressamente: “Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda da criança ou do adolescente, ou quando houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar”. (Art. 1.584 – Código Civil atualizado). Ou seja: a guarda compartilhada, que antes era regra, agora admite exceção clara quando houver qualquer indício de violência — ainda que o processo criminal sequer tenha sido instaurado. Além disso, o novo artigo 699-A do CPC, criado pela mesma lei, obriga o juiz a investigar, antes mesmo da audiência de conciliação, se existe risco de violência doméstica. Se houver suspeita, o magistrado deve conceder cinco dias para que sejam apresentados indícios ou provas, evitando, assim, a imposição de uma convivência forçada entre vítima e agressor (análise detalhada aqui).

Essas mudanças representam mais do que um ajuste técnico: significam reconhecimento. Reconhecimento de que a violência doméstica afeta não só os corpos, mas também os laços. E que a Justiça precisa estar atenta ao contexto antes de exigir “igualdade” entre quem vive em condições desiguais.

É preciso que o sistema jurídico deixe de exigir coragem heróica das mulheres. Que as escute com mais empatia, e julgue com mais contexto. Que entenda que buscar ajuda não é fraqueza, nem vingança – é sobrevivência. E que reconhecer a violência nem sempre é fácil, sobretudo quando ela vem disfarçada de “ciúme”, “preocupação” ou “cuidado”. Ao lado das políticas públicas e da assistência social, o Direito tem um papel educativo e simbólico. Quando a Justiça reconhece a violência, mesmo quando ela não deixa hematomas, envia um recado claro: a mulher não está sozinha. Ela tem nome, tem voz, e tem proteção.

Que o Agosto Lilás não seja apenas um mês de alertas, mas o início de uma escuta ativa e transformadora. Porque proteger uma mulher é proteger toda uma geração. E o silêncio, neste caso, nunca é neutro – é cúmplice. n

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