Num domingo ensolarado de Belo Horizonte, ao cair da tarde, mais de 50 mil pessoas — de todas as classes sociais, raças, gêneros e idades — vindos de todos os cantos, reuniram-se em um símbolo da história da capital mineira: a Praça da Liberdade. Esse ícone mineiro foi palco de um espetáculo gratuito e de rara beleza, apresentado pela Orquestra Ouro Preto, com participação do artista pernambucano Alceu Valença.
Inaugurada em 1897, parte do projeto urbanístico original da nova capital mineira, e centro do poder político-administrativo por muitos anos, a praça é hoje patrimônio da cidade e abriga importantes equipamentos culturais, como o Museu das Minas e do Metal, o Memorial Minas Gerais Vale, a Casa Fiat de Cultura e o Centro Cultural Banco do Brasil. O título “Liberdade” foi reforçado pelo acesso à cultura e ao conhecimento.


O espetáculo, a manutenção dessas casas de cultura e mais de 500 outras ações culturais, atualmente em realização em Minas Gerais, são financiados com recursos da Lei Rouanet – a maior ferramenta de fomento à cultura no Brasil. Somente entre 2023 e 2024, o estado recebeu R$ 618 milhões por meio da Lei, beneficiando mais de 100 cidades mineiras.


Esse cenário positivo de investimentos pode ser bruscamente interrompido com a possível aprovação do Projeto de Lei nº 508/2025, apresentado pelo deputado Kim Kataguiri (União-SP). O PL propõe extinguir a Lei Rouanet e redirecionar seus recursos para a construção de presídios. A proposta ignora o papel estratégico da cultura nos estados e trata o investimento no setor como desperdício.


A cultura é tudo, menos desperdício. É um setor econômico robusto, limpo e inesgotável. Representa 3,11% do PIB brasileiro e gera mais de 7,5 milhões de empregos. Segundo a FGV, cada R$ 1 investido em cultura gera R$ 1,60 em impostos. Em 2024, a Lei Rouanet gerou mais de 1,3 milhão de empregos no país, movimentando não apenas o setor cultural, mas também turismo, transporte, alimentação, segurança e comunicação.


Atacar o setor cultural e transformar a Lei Rouanet na “Geni” da renúncia fiscal federal é uma irresponsabilidade. Redirecionar seus recursos para a construção de presídios é uma tentativa simplista de resolver problemas complexos, que exigem políticas públicas integradas. Neste ano, a Lei Rouanet representa apenas 0,6% dos gastos tributários federais – o equivalente a R$ 2,75 bilhões. Enquanto isso, os incentivos à agricultura, indústria e comércio somam quase 62% das isenções fiscais, e as emendas parlamentares ultrapassam R$ 50 bilhões. Por que, então, retirar recursos justamente da cultura, um dos setores que mais geram retorno social?


A aprovação do PL provocaria a paralisação imediata de ações estruturantes da cultura mineira, como as Mostras de Cinema de Tiradentes e Ouro Preto, o Festival Acessa BH, festas literárias em Paracatu, Itabira e Araxá, o Festival Teatro em Movimento, a Bienal Mineira do Livro, os festivais de Blues, Jazz e Fotografia de Tiradentes, o Circuito Mineiro de Dança e as Rotas das Culturas de Uberlândia. Grupos artísticos como as orquestras Ouro Preto e Filarmônica de Minas Gerais, os grupos Corpo, Galpão e Ponto de Partida estariam ameaçados. Instituições culturais estratégicas poderiam fechar as portas, como o Cine Theatro Brasil, o Memorial Minas Gerais Vale, o Instituto Inhotim, a Casa Fiat, a Fundação Clóvis Salgado, o Museu das Minas e do Metal, o Museu do Oratório e a Casa do Beco. Até mesmo restaurações de patrimônios históricos estariam em risco – como a Casa Rosada, a Igreja Matriz de São Domingos, a Santa Casa de BH, o Cine Teatro Leon, as estações ferroviárias de Moeda e de Santos Dumont, a Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Pereira e o próprio Palácio da Liberdade.


Não é possível que Minas Gerais aceite que a tramitação de um PL que estimula a construção de presídios paralise seu fazer cultural, trazendo prejuízos imensuráveis à sua economia criativa. Não é possível que a Praça da Liberdade, símbolo da fundação de Belo Horizonte e marco libertário da cidade, se transforme num lugar de abandono das nossas instituições culturais e do fracasso da política pública de segurança.

Henilton Menezes

Secretário de Fomento e Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura

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