Educação negada, futuro comprometido
Vivemos em um país no qual, até o século 19, ainda não havia sequer uma universidade disponível para a sociedade. Os nossos analfabetos são, muitas vezes
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Siga noSegundo pesquisa do Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf), cerca de um quinto da população, com idades de 15 a 29 anos, é, atualmente, conhecida como nem-nem, ou seja, não trabalha nem estuda. E, desse grupo, 18% das pessoas são analfabetas funcionais (sabem ler, mas não compreendem textos simples ou são incapazes de realizar operações básicas de matemática). A leitura do mundo precede a da palavra. Primeiro, percebe-se a circunstância ao redor para, depois, nomeá-la. É a interação com o que nos cerca o que determina a nossa compreensão, é o que nos dá a ciência das coisas.
Vivemos em um país no qual, até o século 19, ainda não havia sequer uma universidade disponível para a sociedade. Os nossos analfabetos são, muitas vezes, uma herança histórica de uma nação que nunca priorizou a educação. A elite, quando tinha de estudar, atravessava o Atlântico para buscar formação em Coimbra ou em qualquer outro arrabalde da Europa. Mesmo com a chegada de Dom João VI ao Brasil, em 1808, não houve nestas plagas prerrogativas quanto ao ensino. Desde 1500, a urgência sempre foi outra: extrair, escravizar e exportar.
Pretos e pardos (68%) são os mais impactados por essa realidade, paralisando-se e marginalizando-se. São milhões de pessoas que ficaram, mais uma vez, alheias ao direito de ter acesso à educação. Destaca-se que 60% dos nem-nem são mulheres, conforme dados do Ministério do Trabalho e OCDE.
Esse é um dado que revela uma chaga aberta no Brasil: a desigualdade social. Este talvez seja o maior problema enfrentado pela nossa população ao longo dos séculos. E, como sempre, apesar de haver melhoras sutis, quase nunca o problema é de fato resolvido. Ao longo da nossa história, jamais vimos o analfabetismo ser erradicado por aqui. Isso tudo está associado ao fato de que temos uma das distribuições de renda mais desiguais do mundo.
Durante muito tempo, no Brasil, apenas a elite tinha acesso ao ensino superior, o que lhe conferia um certo status e melhores oportunidades de trabalho e renda. Evidentemente, esta situação contribuía para o aumento ou a perpetuação das desigualdades ainda vividas no país. Por exemplo, ainda hoje, um por cento da população mais abastada recebeu em 2024 o equivalente a 36,2 vezes o que ganhavam os 40% mais pobres; esta é a menor diferença observada desde 2012. Em 2019, essa diferença era de 48,9 vezes (de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE).
O sistema no qual vivemos, que privilegia certos grupos e etnias, faz com que o desenvolvimento social na área da educação seja escasso. Falta de verba, parcos recursos e políticas de permanência insuficientes são alguns dos motivos para que haja uma população de nem-nem. Mas, apesar de tudo, houve uma redução de cerca de 10,9 milhões de jovens nessa situação em 2022 para 10,3 milhões em 2023, de acordo com o IBGE.
A universidade tem um papel imprescindível para o desenvolvimento do Brasil quando cumpre a função de inserir indivíduos pensantes no próprio núcleo de nossa comunidade, ideando soluções para satisfazê-la, para melhorá-la industrial e tecnologicamente. Ter pessoas alijadas de direitos basilares como emprego e estudos é legar o nosso futuro ao que há de mais sombrio, condenando-nos à indigência e à pasteurização de conceitos.
Deve estar claro que existe um movimento dinâmico entre pensamento, linguagem e realidade. Disso, resulta-se uma capacidade criadora. Assim, quanto mais esse movimento é vivido integralmente, tanto mais os indivíduos se tornam sujeitos críticos do processo de conhecer, de ensinar, de aprender, de ler, de escrever, de estudar.
É necessário ousar para que haja mais pessoas nas salas de aula; e a ousadia é política, dá-se por meio de investimentos no setor e para os seus profissionais. O professor resiste ao risco de cair vencido pelo cinismo. Ousa-se, então, para não ceder à burocratização da mente a que nos expomos diariamente. É pela ousadia que se torna possível continuar com vantagens materiais.
Não saber, quase sempre, faz parte do saber. Este é, muitas vezes, o ponto de partida para obter conhecimento. Aliás, é com o fim de poder trabalhar e ter melhores condições de vida que milhões de jovens desejam ingressar na universidade. E quando isso nos falta, o destino dessas pessoas é muitas vezes o ócio improdutivo, que aniquila.
No fim, uma última ilação: creio que, para além do ofício estrito da disciplina acadêmica, o ato de educar é social e depende da comunidade à qual pertencemos e dos nossos representantes políticos. Afinal, políticas públicas que encetam benefícios aos nossos potenciais discentes (jovens e adultos que estão ao léu) ajudam na formação destes. A nossa tarefa é, antes de tudo, formar pessoas para a vida; isto, per si, é algo que vai além da mera visão utilitária de prepará-los para um trabalho específico, apesar de ser extremamente necessário.
Afinal, a pedagogia (o conhecimento) que não liberta nos faz prisioneiros de uma lógica que oprime e, pior, nos torna algozes de nossa própria prole. Diz-se que a autoridade é uma invenção da liberdade – as liberdades individuais que se contrapunham umas às outras e na sucessão entre seus pares descobriram que precisam inventar uma coisa que fosse o seu contrário para que elas próprias fossem preservadas.