Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Transpassado pela lança do soldado, no alto da cruz, do lado aberto de Cristo jorraram sangue e água. Assim narra o evangelista, testemunha ocular da crucificação. A ferida aberta de Cristo se torna fonte eterna e inesgotável de graças e bênçãos. Uma resposta esperançosa à história da humanidade, resposta de redenção e reconciliação. O sacrifício de Jesus arranca a humanidade do fracasso. As chagas de Cristo são contraponto às feridas abertas na humanidade contemporânea, que se multiplicam revelando a força destruidora da perversão. As dores da civilização fazem ecoar um grito forte com pedidos de socorro – sinal de que há mais gente ferindo que curando. Mesmo diante de tantas conquistas científicas e tecnológicas, as feridas da humanidade carecem de adequado tratamento, pois muitas patologias incidem na razão humana. Enfermidades alimentadas pelo hábito doentio de buscar abrir feridas, com consequências deploráveis para pessoas e instituições.
Estreitezas humanas que promovem feridas sociais são contabilizadas nas iniquidades e indiferenças, revelam-se nas manipulações espúrias e mentirosas para se alcançar lucros, gananciosamente apropriar-se de bens. Requer atenção as patologias que incidem na razão, tornando-a instrumento para justificar ações predatórias contra o ser humano e o meio ambiente. Entre os males está a mentira, um dos terríveis aguilhões que abrem feridas na cidadania, encobrindo a mesquinhez. A mentira medra no contexto social e distorce a consciência cidadã, patrocinando uma luta insana por poderes. Ninguém sai vitorioso, pois essa insanidade leva ao aumento do número daqueles que se ferem e amplia a carência de pessoas capazes de curar. Com as distorções da consciência, a mediocridade toma conta, fazendo o ser humano acreditar que o importante é buscar ajuntar tudo para si, mesmo que o preço seja trilhar pelas linhas da corrupção.
A corrupção do ser humano é porta escancarada à violência de todo tipo, pois faz prevalecer os próprios interesses em prejuízo do bem comum. Dentre os diferentes tipos de violência está a busca por eliminar aqueles com os quais se estabelece relação de discordância, mais um sinal da patologia da razão, normalizado a ressentida atitude de se pautar pela vingança. Uma atitude que mina a capacidade para experimentar o sentimento de gratidão. Ancorando-se na razão patológica, considera-se o próprio poder como absoluto. Assim, há uma incapacidade para lidar com a divergência, tratando com intolerância e indiferença aqueles com quem se estabelece relação de discordância. Avoluma-se assim o coro próprio do cinismo das ideologias que criam divisões, justificam truculências e seduzem, de modo tão intenso, que fazem seus seguidores se considerarem “donos da verdade”. Alimentam a prepotência e o autoritarismo que advogam o direito de não agir com gratidão em relação àqueles que têm visão de mundo diferente.
Há, pois, um risco inerente às ideologias: rifar ou manipular a moralidade de acordo com os próprios interesses. Essa permissividade frequentemente verificada no partidarismo ameaça a moralidade e o direito, fazendo com que as relações humanas se distanciem do patamar mínimo de civilidade. Consequentemente, proliferam avacalhações institucionais, com arranjos que buscam apenas promover amigos e simpatizantes, mesmo que isso signifique acentuar feridas organizacionais. O Papa Bento XVI, em um texto publicado antes de se tornar pontífice, sublinha que a razão doente se manifesta na crueldade e na indiferença, pouco se importando com a reconstrução da sociedade e do mundo. Aqueles que se valem da razão adoecida pouco se interessam pela dignidade humana, ignorando os pobres, sofredores e indefesos. Bento XVI diz que o cristão não é chamado a colocar limites à razão ou opor-se a ela, mas a lutar pela sua faculdade de percepção do bem e do bom, do sagrado e do santo. Assinala ainda que assim se travará o verdadeiro combate contra a desumanidade.
Compreende-se, pois, que o cristão, em lugar do cinismo das ideologias, ou dos posicionamentos extremistas, causas de muitas feridas abertas à humanidade, tem o desafio de levar a razão a funcionar integralmente, não apenas no âmbito da tecnologia e do desenvolvimento material do mundo, mas como faculdade para reconhecer o bem, abrindo trilhas para fazer valer e efetivar atitudes alicerçadas no amor, caminho para sanar as feridas abertas. Nas sendas do amor, a razão brilhará com uma luz nova, liberta das patologias que justificam crueldades, genocídios, indiferenças em relação aos pobres da terra; manipulação de poderes. A razão livre de patologias modifica as relações internacionais e cidadãs, que passam a se ancorar no gosto pela solidariedade, incluindo a nobreza de não se buscar a vingança. É hora de imediata e veloz superação de todo tipo de ceticismo, para que os cristãos possam levar nova luminosidade à razão, contribuindo para diminuir, até a extinção, as muitas feridas abertas nas pessoas, nas instituições e na sociedade. No lugar do personalismo e do modo autocrático de agir, conferir nova luz à razão possibilitará ampliar o número daqueles que curam, pelo perdão e gratidão, ampliando a esperançosa oportunidade de um novo tempo para a humanidade. Tempo de feridas cicatrizadas com gestos de amor e de reconciliação. Ecoe sempre do lado aberto de Cristo para ressoar nos corações da humanidade o nobre clamor do Mestre: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”!