Felipe Crisafulli
Sócio do Ambiel Bonilha Advogados e membro da Comissão de Jogos e Apostas e do Jogo Responsável da OAB/SP e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal)
Após quase um ano da decisão liminar proferida pelo ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), em que determinava ao Ministério da Fazenda, autoridade competente nos termos da Lei n. 14.790/2023, a implementação de medidas imediatas de proteção especial que impeçam a participação nas apostas de quota fixa com recursos provenientes de programas sociais e assistenciais; como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada e congêneres (grifou-se), enfim a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA/MF) alterou a regulamentação das bets no país, a fim de restringir o acesso dos beneficiários do Programa Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) às apostas esportivas e aos jogos online.
Entretanto, afirma-se desde logo: a Secretaria foi além do que o STF estabeleceu – ou, dito de outra maneira, deixou, na prática, de cumprir com a determinação judicial e, pois, com todas as vênias que o mundo jurídico costuma pedir, incorreu em mais um absurdo, para além dos vários que a própria decisão já produziu. Senão, vejamos.
Por força da Portaria SPA/MF nº 2.217, de 30 de setembro de 2025, está o agente operador obrigado a impedir o cadastro ou o uso de seu sistema de apostas por beneficiários do Bolsa Família e do BPC. Acontece que essas pessoas não necessariamente contam apenas com a renda obtida a partir de tais programas assistenciais e sociais. Por mais ínfimos que possam ser – e de fato são – os recursos que os indivíduos elegíveis a tais programas porventura aufiram mensalmente, nada impede que eles tenham outra fonte de recebimento de dinheiro.
Logo, ao proibir que todo e qualquer beneficiário desse tipo de programas se cadastre ou mantenha cadastro ativo na base de dados de agentes operadores de apostas, a SPA/MF foi além do que o STF determinou, pois vedou que também aqueles valores acaso recebidos a partir de outras atividades por pessoas elegíveis ao Bolsa Família e/ou ao BPC sejam também maculados como não 'apostáveis'.
Não basta, pois, a decisão judicial revelar, no fundo, um paternalismo travestido de zelo; um gesto de vigiar, regular e podar que traduz a cultura do coitadismo, em que só é merecedor de verdadeira e mais ampla liberdade aquele que, sem ajuda governamental, consegue prover a si próprio mais do que o estritamente necessário.
Acabou o governo federal indo além, adotando um viés paternalista ainda mais exacerbado, “protegendo os pobres” como se fossem incapazes ou cidadãos de segundo nível, corroborando o não exercício pleno da sua cidadania e para a massificação de estigmas e preconceitos contra essa classe já tão sofrida no país.
Embora vivamos num país majoritariamente cristão, apostar não é pecado – tampouco tábua de salvação. É, e assim há de ser, passatempo e diversão. Uma forma de lazer que, como tantas outras, exige moderação. Equipará-lo, desde logo, ao vício e/ou a ilícitos é julgar com régua moral seletiva, sobretudo quando a mira está apontada aos que já pouco ou nada têm.
Mais grave: parte-se da premissa de que os pobres não sabem escolher, necessitando de tutela a todo tempo, sendo protegidos de si mesmos. É a velha tentação da tirania dos bem-intencionados, como advertiu C. S. Lewis, em que a censura não floresce da maldade, mas da convicção moral de quem crê saber o que é melhor para os outros – ainda que, a princípio, com o melhor dos propósitos.
Parafraseando o presidente da República, o Bolsa Família não é esmola, é direito. E direito se exerce com liberdade – dentro dos limites da lei, mas com liberdade, sempre. Fiscalizar como o benefício é gasto – e, pior, limitar o seu uso com base em critérios morais – é retroceder à lógica de uma cidadania condicional, em que mais vale o que se tem do que o se é.
O verdadeiro risco não é a aposta em si, mas a aposta perigosa de se normalizar esse tipo de controle. Porque hoje são as bets; amanhã pode ser a cerveja, a Mega-Sena, o celular novo, a picanha ou a viagem de avião.
Não se trata de se ignorarem problemas reais, como o vício em jogo e o superendividamento, que merecem políticas sérias de prevenção e acolhimento, mas de se recusarem soluções fáceis para questões complexas. Afinal, entre a liberdade e o moralismo, é sempre mais justo confiar no cidadão.