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O plástico que envolve os livros

O plástico cria uma barreira entre o leitor e o livro, impede o toque, o folhear, o gesto de aproximação que sempre fez parte da experiência literária

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AFONSO BORGES - Produtor cultural e escritor

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Os livros brasileiros continuam chegando às livrarias e aos leitores vestidos em uma camada de plástico transparente – um invólucro que se tornou tão comum que já passa despercebido. Aparentemente inofensiva, essa película é, na verdade, o símbolo de uma contradição profunda: a de uma indústria que produz cultura e conhecimento, mas ainda não aprendeu a lidar com o impacto ambiental que causa.


Segundo a pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial 2024, da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), o Brasil imprimiu 366 milhões de exemplares no último ano. Estima-se que 70% deles tenham sido embalados individualmente em plástico – cerca de 256 milhões de unidades. Cada invólucro pesa, em média, entre 1,4 e 2,7 gramas, o que representa de 360 a 700 toneladas de lixo plástico por ano. Um material de baixo valor de reciclagem, que quase sempre termina em aterros sanitários e, irremediavelmente, no mar, contribuindo para o pior dos mundos: os microplásticos.


O argumento das editoras é conhecido: o plástico protegeria o livro do calor, da umidade e da poeira. Mas trata-se de uma proteção efêmera – dura apenas até o momento da compra, quando o leitor rasga o invólucro e o descarta. É um cuidado de minutos que resulta em séculos de poluição.


Nos bastidores do setor editorial, porém, há outro fator decisivo. Grandes plataformas de e-commerce, como a Amazon – e possivelmente o Mercado Livre – exigem que os livros sejam entregues embalados individualmente em plástico. Caso contrário, devolvem caixas inteiras de exemplares. Por isso, muitas editoras passaram a pedir às gráficas que já enviem parte ou toda a tiragem “shrinkada”, termo técnico para o filme termoencolhível que envolve o livro. Algumas editoras até adquiriram suas próprias máquinas, embora o processo demande energia e gere calor elevado.


Essa exigência criou uma espécie de círculo vicioso: as gráficas embalam para atender às editoras, que embalam para atender às plataformas, que embalam novamente para o envio final ao consumidor. O resultado é uma explosão de plástico descartável – um custo ambiental que ninguém parece disposto a assumir.


Se a prática se consolidar como norma e todos os livros passarem a sair de fábrica plastificados, o impacto pode dobrar. Nesse cenário, o mercado editorial brasileiro produziria entre 520 e 1.000 toneladas de resíduo plástico por ano apenas para cumprir uma exigência comercial.


Há também um aspecto simbólico. O plástico cria uma barreira entre o leitor e o livro, impede o toque, o folhear, o gesto de aproximação que sempre fez parte da experiência literária. A embalagem protege o objeto, mas distancia o leitor. O livro, que existe para ser aberto, chega lacrado.


Em outros países, o hábito já começou a mudar. Editoras europeias e livrarias independentes vêm substituindo o filme plástico por faixas de papel reciclado, envelopes de celulose biodegradável ou, simplesmente, por nada. Confiar no cuidado do leitor é um gesto de respeito – ao público e ao planeta.


O mercado brasileiro precisa rever essa lógica. Reduzir o uso de plástico nas embalagens não exige ruptura nem grandes investimentos, apenas vontade de mudar. É preciso que editoras, gráficas e plataformas online assumam a responsabilidade conjunta de transformar o livro em um produto coerente com o que ele representa: um veículo de pensamento, consciência e futuro.

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