FREDERICO DUARTE GARCIA
Médico com especialização em psiquiatria
No início deste mês, o Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que beneficiários do Bolsa Família usaram cerca de R$ 3,7 bilhões em apostas online em janeiro de 2025, igual a 27% do total pago pelo programa naquele mês. O dado indica que as apostas online já se caracterizam, no Brasil, como um problema relacionado ao transtorno do jogo.
O transtorno do jogo retrata uma dinâmica complexa que combina pensamentos distorcidos, comportamentos compulsivos e reações emocionais intensas. É um transtorno comportamental. A condição afeta significativamente a vida pessoal, social e financeira dos indivíduos. Embora o jogo de apostas possa começar como recreação, para algumas pessoas o hábito evoluirá para um padrão desadaptativo, capaz de desencadear um ciclo psicológico devastador.
No cerne do transtorno estão distorções cognitivas que influenciam a forma como os indivíduos avaliam os riscos e resultados do jogo. Entre os pensamentos comuns está a crença equivocada de que se pode controlar eventos baseados no acaso, como jogos online, loterias ou máquinas caça-níqueis. Isso leva as pessoas a interpretarem eventos casuais como sinais de que "a sorte está por vir" ou que perdas consecutivas são "um prenúncio de vitória".
Esse pensamento ilusório, reforçado por pequenas vitórias, alimenta a crença de que insistir nas apostas inevitavelmente trará ganhos futuros. Além disso, a relação com o dinheiro é distorcida. Em vez de vê-lo como um recurso limitado, jogadores compulsivos frequentemente o tratam como um passe para a solução de problemas como dívidas. Essa percepção reforça um padrão perigoso: apostar mais dinheiro na tentativa de recuperar perdas: a “recuperação de prejuízo” é um dos pilares do transtorno. Para essas pessoas, o fracasso financeiro de hoje é visto como um obstáculo temporário que será resolvido com a próxima aposta. O acesso fácil a jogos ou apostas acentua a tendência.
Jogadores com transtorno do jogo não conseguem resistir ao estímulo imediato, mesmo diante de consequências negativas evidentes. Muitas vezes, há um desejo urgente e incontrolável de apostar quantias maiores ou de jogar continuamente até a almejada vitória. É como uma descarga emocional: o ato de jogar é quase um “anestésico” psicológico para combater sentimentos como culpa, ansiedade, solidão e depressão. É comum que pessoas com o transtorno recorram ao jogo em momentos de estresse ou sofrimento emocional.
A tentativa de parar de jogar, por sua vez, gera um ciclo de inquietação, irritabilidade e abstinência. Mesmo após prejuízos drásticos, as pessoas afetadas têm dificuldade de interromper o comportamento. O transtorno do jogo afeta a percepção do indivíduo e suas ações. Muitos recorrem a empréstimos, mentem para familiares e podem realizar atos ilícitos para financiar suas apostas ou cobrir dívidas.
Essa atitude destrutiva desgasta relações pessoais, afeta empregos e desestabiliza vidas financeiras. Entre as consequências mais dramáticas se destacam a perda de relacionamentos significativos, a falência e, em casos graves, pensamentos destrutivos e suicidas. A frustração, culpa e desespero tornam-se frequentes, criando um ciclo contínuo onde o jogo é a única fonte de alívio momentâneo, ao mesmo tempo que agrava os problemas existentes.
O comportamento obsessivo associado ao transtorno do jogo não é uma questão de escolha ou falta de disciplina. Ele envolve alterações na forma como a pessoa reage a recompensas, riscos e frustrações. A compulsão em apostar está ligada ao desejo de escapar da realidade ou de buscar uma solução rápida, mas se traduz em um labirinto que fortalece os problemas que promete resolver.
Romper esse ciclo é um desafio. Envolve não apenas resistir ao impulso de jogar, mas também exige apoio familiar e a reconstrução de crenças sobre a sorte, dinheiro e controle. O primeiro passo está em reconhecer o problema e buscar tratamento, seja por meio de terapia comportamental, apoio de grupos ou intervenções especializadas.
Contudo, a baixa procura por tratamento é um obstáculo para muitas pessoas. Muitas pessoas não se identificam com o problema. O transtorno do jogo é um exemplo claro de como a mente humana pode se tornar refém de pensamentos ilusórios e padrões destrutivos. O que começa como um prazer inocente, impulsionado por pequenas recompensas, pode se transformar em uma armadilha emocional e comportamental com consequências avassaladoras. A recuperação depende de tratamento, suporte contínuo e, acima de tudo, da compreensão de que o jogo, para quem sofre do transtorno, já não é mais uma escolha – é uma compulsão.