Livro que Kafka criou em uma noite ganha edição de luxo
Em mais uma alegoria do escritor checo sobre a condição humana, ‘A construção’ tem edição sofisticada que realça uma narrativa inquietante – e inacabada
compartilhe
Siga noFaustino Rodrigues
Especial para o EM
Franz Kafka (1883-1924) se firmou como um dos autores mais enigmáticos de nossa literatura. Mesmo completando um século de seu falecimento em 2024, até hoje a sua obra rende comentários e estudos, demonstrando o quão inesgotável é. Chegou a se tornar adjetivo: kafkiano. De fato, isso se deve a uma inabalável atualidade. Alguns de seus textos parecem até mesmo previsões. Esse é o caso de “A construção”.
Recentemente publicada pela Ubu, “A construção” ganhou uma edição de luxo. Na verdade, o livro concebido em uma única noite, por volta de 1924, foi apresentado na forma de uma verdadeira obra de arte, dirigida por Elaine Ramos, em edição de Gabriela Naigeborin, tradução de Sofia Mariutti e posfácio de Cristian Dunker. O material impresso tenta, com sucesso, dialogar com a ideia inicial de seu autor.
A leitura somente se torna possível ao se colocar um anteparo de papel no interior de cada página, que na verdade são como envelopes. Assim, criamos um fundo para tornar o texto legível. É uma experiência que tenta, com sucesso, dialogar com a obra, criando um ambiente para a sua leitura. E acaba, de alguma maneira, dialogando com os nossos tempos.
Leia Mais
“A construção” é mais um texto inacabado de Kafka. E a sua não finalização cria ares inquietantes na narrativa. A história acompanha um narrador-personagem obsessivo na construção de uma estrutura subterrânea. O objetivo é o de garantir a segurança contra inimigos difusos e ameaças indefinidas.
Trata-se de um monólogo imersivo que nos leva a um cenário de paranoia e medo a dominarem a mente do protagonista. Jamais identificamos quais são esses perigos. Não há qualquer concreta insinuação deles. Ao contrário, notamos o seu aprofundamento na própria lógica do isolamento, aprisionado em suas próprias preocupações. Preocupações estas que, basicamente, são a segurança de sua construção.
Como dissemos antes, o conto é atual. Ressoa nele um mundo onde a insegurança e a paranoia se tornaram estados permanentes. Falamos isso a partir da evidência da vigilância digital, crises políticas e isolamento social. Logo, podemos ler “A construção” como uma alegoria do medo contemporâneo e nossas tentativas infrutíferas de proteção do incontrolável.
O protagonista se empenha na edificação de um refúgio perfeito, mas o paradoxo se impõe: quanto mais trabalha para se proteger, mais se expõe ao próprio medo. A obsessão pela segurança gera a vulnerabilidade. Eis o dilema a ecoar no mundo atual, em que a busca por controle frequentemente nos leva a novos riscos e ansiedades.
A escrita de Kafka é um dos grandes trunfos do conto. O estilo é peculiar, com frases longas, digressivas, criando um fluxo de pensamentos a envolver o leitor na mente do protagonista. Um envolvimento que é robustecido pela experiência de leitura criada pelo trabalho artístico da Ubu, ao nos colocar em uma situação de alguém que tenta lê-lo no escuro.
É interessante observarmos como o texto avança em espirais, repetindo certas ideias e questionamentos, reforçando o sentimento de aprisionamento mental a permear a obra. Deparamo-nos, então, com a ausência de respostas concretas, somada ao caráter fragmentário da narrativa. Assim, não está mantida somente a tensão ao longo do conto, pois notamos também uma espécie de suspensão. O leitor nunca sabe se a ameaça é real ou se é fruto da obsessão do protagonista. Aqui está um dos aspectos mais brilhantes do conto: a paranoia não é apenas descrita, ela é transmitida.
Metafórico, podemos interpretar a simbologia da construção subterrânea de múltiplas formas. Podemos remeter ao isolamento social e psicológico, bem como podemos lê-la como uma representação do processo criativo e das dificuldades da escrita – algo marcante em outros textos de Kafka.
O protagonista, tal qual um escritor, constrói meticulosamente sua obra, preocupado com cada detalhe, mas sempre insatisfeito, pois algo essencial lhe escapa. A sensação de inacabamento a permear a construção reflete a própria condição humana e a angústia de nunca atingir a plenitude.
Outro ponto que reforça a sua atualidade é a interface com as novas formas de alienação tecnológica. Em um mundo dominado por redes sociais e bolhas informacionais, muitas pessoas, assim como o protagonista, tentam criar espaços seguros onde possam se blindar das ameaças externas. Contudo, essa tentativa de refúgio frequentemente se transforma em mecanismo de aprisionamento, limitando o olhar para o mundo e reforçando o isolamento. A obsessão pela proteção gera um labirinto do qual o sujeito não consegue escapar, pois a segurança absoluta é uma ilusão inalcançável.
Assim é que Kafka constrói uma alegoria sobre a condição humana. Aborda temas como a alienação, o medo, a busca infrutífera por controle e a armadilha da mente obsessiva. “A construção” ecoa nos desafios contemporâneos, reafirmando a genialidade do autor em captar dilemas universais.
Estamos diante de uma leitura perturbadora, mas também profundamente reveladora ao nos obrigar refletir sobre nossas próprias construções – sejam elas físicas, psíquicas ou sociais – e sobre o quanto estamos, de fato, protegidos dentro delas.
FAUSTINO RODRIGUES é jornalista, sociólogo e psicanalista.
“A construção”
• De Franz Kafka.
• Tradução de Sofia Mariutti
• Posfácio de Christian Dunker
• Imagens de Andres Sandoval, Cildo Meireles e Jac Leirner
• Ubu Editora
• 88 páginas
• R$ 89,90