Luiz Morando - Especial para o EM
A consolidação política e econômica da burguesia europeia no século 19 garantiu mais evidência ao romance histórico, seja como expressão da moral e dos costumes daquela classe, seja como ferramenta para releitura do passado e acomodação do presente aos moldes dos novos valores sociais. Aquele gênero literário serviu como caixa de ressonância de um conjunto de valores considerados exemplares para erguer uma sociedade.
Na literatura, o período romântico também tomou para si a tarefa de ajustar uma nova visão social ao padrão de vida burguês. No Brasil, essa missão se tornou quase paradoxal, pois mobilizou diversos escritores para driblar uma realidade com marcas patrimonialistas, coloniais, escravagistas e pré-industriais muito profundas e dobrá-la, no âmbito ficcional, ao desejo de se europeizar e aburguesar.
Leia Mais
“Proteu & eu”, do escritor e historiador mineiro Luiz Fernandes de Assis, publicado pela Benvinda Editora, não se constitui em um romance propriamente histórico. No entanto, ao tomar uma figura proeminente do período imperial brasileiro como um de seus protagonistas e chave de leitura para nossa herança político-cultural, avizinha-se daquele gênero.
- Livro de jornalismo investigativo é destaque no 'República Jenipapo', em BH
- O escritor que virou prefeito e promoveu igualdade racial nas escolas
- "Nunca vi tantos 'Vidas secas' de má qualidade", diz neto de Graciliano
Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850) foi um misto de político, jornalista, magistrado, pedagogo, conselheiro, jurista e escravocrata que arquitetou as bases da nação brasileira. Ele tomou para si a ambição de formular os esteios da organização jurídica, política e econômico-liberal do Brasil.
Na narrativa, a vida de Bernardo de Vasconcelos é reconstituída pelo escritor Vladimir Ramos, o Vado, nos tempos atuais. Solitário no litoral baiano, Vado se dedicou à produção literária após perder a esposa no parto de seu único filho, que entregou aos avós maternos para criar.
Uma espécie de ermitão contemporâneo, Vado se isolou a fim de se entregar ao projeto de retirar Vasconcelos do esquecimento. Nesse contexto, ele será surpreendido pela visita do filho e da nora na vila onde reside. A partir desse ponto, a narrativa se esboça como um contínuo duplo acerto de contas de Vado: com o passado distante, ao retirar Bernardo Vasconcelos do esquecimento; com o passado recente, ao precisar dar atenção ao filho e à nora, frustrados pelas diversas tentativas de ter um filho.
A estrutura em duplicidade se intensifica pela alternância narrativa entre a vida de Vasconcelos e a relação de Vado com seu filho; pela percepção do primeiro como pai da nação e de Vado como um pai invalidado; pela impossibilidade de ser pai e constituir família por parte de Vasconcelos e pela paternidade conscientemente rejeitada por Vado; pelos vestígios de uma estrutura sociopolítica do passado em um presente ainda carregado pela herança patrimonialista.
A estrutura de “mise en abyme” é o artifício perfeito desenvolvido por Luiz Fernandes de Assis em seu terceiro romance. O autor projeta os diversos encaixes de maneira experiente, destacando-o no espelhamento contido no título não apenas entre o pronome pessoal (que remete ao narrador) encaixado em Proteu, o apelido que Bernardo Vasconcelos ganha por parte dos desafetos. É sobretudo pelo deus da mitologia grega conhecido pelo poder de mudar de forma e disfarçar a aparência quando bem entendesse.
Porém, para surpresa do leitor e mantendo o efeito de duplicidade ao infinito da obra, essa condição proteiforme se revelará para Vado de onde menos se espera, configurando o sobressalto final da narrativa. Motivo mais que suficiente para mergulhar nessa narrativa e se deixar levar pelas mãos experientes do autor.
Luiz Morando é escritor, autor dos livros “Paraíso das maravilhas: uma história do Crime do Parque” (2008) e “Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte” (2020)
“Proteu & eu”
De Luiz Fernandes de Assis
Benvinda Editora
318 páginas
R$ 80
Trecho do livro
“A viagem no lombo de uma mula, da corte do Rio de Janeiro até a Imperial Cidade de Ouro Preto, durava três semanas, dependendo das condições climáticas, com várias paradas em fazendas de amigos e conhecidos. A dor no nervo ciático era dilacerante, acentuada pelo uso do arreio. A perspectiva de reencontrar a família, os amigos de O Universal, os conhecidos de Mariana e os de casa compensava o incômodo. Rever as duas irmãs casadas e seus cunhados, as duas manas solteiras, carinhosas e prestativas, e o Chiquinho, irmão caçula rapa do tacho, tornava o retorno à pátria mineia uma bênção familiar.
Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia
A antiga Vila Rica ressentia o êxodo de seus habitantes; andava vazia e deserta, com casas abandonadas e com um cheiro persistente do mofo e do incenso das igrejas. Impregnava-o o ar um odor real do mundo católico e barroco das irmandades mineiras. Bernardo, que nascera em uma família tradicional e religiosa (como todos os da “boa sociedade”), via e vivia o espírito do seu tempo refletido nas raras procissões a que assistia da janela. Procissões disputadíssimas pelas irmandades do Santíssimo Sacramento e das Ordens Terceiras do Carmo, do Pilar e de Antônio Dias.
Em 1828, o doutor desembargador Vasconcelos estava com trinta e dois anos, mas parecia ter mais de quarenta. As dores constantes que sentia diminuíram muito sua vontade de frequentar a Igreja do Carmo ou de ir às missas, um suplício desnecessário dado o sofrimento constante; por isso, só rezava no oratório da casa e ao pé da cama.”