MEU MANO E EU nos revezamos sobre o colo de mamãe para ver se o coração já tinha encerrado mesmo seus serviços. Primeiro ele. Pousou a orelha sobre a teta esquerda e foi apressado. Depois eu, que me larguei ali uns bons minutos. O coração de mamãe já não usava tamancos. Simão ainda foi prudente e es tendeu o indicador debaixo de seu nariz, roçando aquele buço ralo. Nada. Mamãe parecia satisfeita, muito morta. Nenhum de nós teve peito para descer o dedo nas suas pálpebras. Aquela visão estava estragando a gente. Não é direito os mortos se manterem tão esbugalhados. Então me ocorreu ir até a cozinha. Voltei de lá com uma colher de sopa e meu mano entendeu na hora. Fechamos primeiro a esquerda e depois a direita. Segurando juntos o cabo da colher como se cortássemos um bolo de noivos. Simão soltou rápido e escondeu a mão nos bolsos. Depois, a colher ficou inútil, na minha mão. Decidimos que não teria cabimento devolvê-la pra gaveta. Melhor seria dar um fim nela, quem sabe enterrá-la debaixo de algum formigueiro.
SUBO NA CAMINHONETE
e Simão dá a partida. Os pneus começam a chorar no barro e eu torço para não atolar. Ele força a marcha a ré e de repente tudo em nós empina. Meu mano está cabreiro. Não quer saber que raios eu escutei quando deitei o ouvido na terra. Ele põe óculos escuros e se sente um americano. Simão, seu jeans, seu cinto de fivela. Vamos mudos o caminho inteiro e a campina se arreganhando no horizonte. Aqui a estrada é fina, as folhas de cana entram por dentro da janela estapeando o vidro. Quando o mato abaixa, os morros surgem no longe. Os tratores maquinando. A encosta rasgada como as rugas que circulam um cotovelo. Simão me estende chicletes, eu faço que não. Tem um mês que enterramos mamãe. Desde então, comecei a perceber sotaques vindos da lama.
A palavra do autor
“Entre o pavor e a ternura”
“O livro ‘Escrevo seu nome no arroz’ nasceu de uma pesquisa sobre a fantasmagoria e o fantástico como um modo de ler nosso tempo. Bastante inspirado pela obra de autoras latino-americanas como Mariana Enríquez, Fernanda Melchor e Samanta Schweblin, o livro pensa como assombro, o vestígio e o encantamento são possibilidades de dar forma a processos históricos violentos. É um romance que conta a história de dois irmãos em uma zona rural após enterrarem a mãe. O quintal da casa passa a ser povoado por vozes inexplicáveis que sobem da terra. Meu desejo foi mergulhar na intimidade de cuidado, afeto e desavença entre essas duas figuras. Oscilando entre o pavor e a ternura, esses dois irmãos apontam para duas direções opostas no contato com aquilo que excede o humano. Essa palavra, aliás, encontra-se em total tensão. O livro propõe um questionamento de como pensar o mundo para além do ser humano como centro e medida de todas as coisas, especulando sobre modos improváveis de parentesco com outros entes e viventes.”
Reprodução
“Escrevo seu nome no arroz” • De Caetano Romão • Fósforo • 192 páginas • R$ 79,90
Luiza Sigulem/divulgação
“Diário do fim do amor”
Ingrid Fagundez
12 de outubro do Ano 1
Cheguei ao apartamento dele para ter a conversa de sempre, e ele mudou de assunto. Não sei se foi dessa vez que se jogou aos meus pés e chorou, pedindo que eu ficasse, um menino tão pequeno. Eu fiquei, de qualquer forma.
Você aceita o amor que acha que merece. Uma amiga disse a frase há uns dias e eu ainda a escuto: que você acha que merece. Me tenho em tão pouca estima que mal reconheço os olhos no espelho. Não são meus — assim como o amor não é. Assim como não o mereço. Alterno estados de ódio, rancor e paixão, mas o suficiente para pôr os dois primeiros em dúvida. Ódio? Rancor? Amor? Eu? Nós?
Vejo o céu violento de tão azul e digo que hoje deveria ser um dia violento de tão feliz! E, mesmo assim, o aperto. Nós?
Ele diz e desdiz e repete e tropeça até que suas palavras e pro-mes-sas-se-en-ro-lem-em-mim. Eu?
Só enxergo a muralha de prédios e um ou outro desejo ignorado, uma ou outra vontade apagada. Só enxergo o pouco amor, que conto na palma das mãos: um, dois, nós?
Sonhei noite passada com uma maçã apodrecida, embolorada, jogava tudo fora. Eu?
Quero vê-lo hoje e espero que me ofereça mais — ódio?
O que fala mais alto?
A palavra da autora
“Um esforço de autointitulação”
“O ‘Diário do fim do amor’ foi um livro que levou anos para ser escrito e editado, e a duração do processo se deveu a alguns motivos. Antes de mencioná-los, talvez seja necessário pontuar que livros, no geral, são empreitadas que tomam tempo para imaginá-los, depois, para testá-los no papel, e então para escrevê-los de fato, editá-los, colocá-los no mundo. É uma gestação elefantesca. No caso do ‘Diário’, esses anos foram cruciais para que eu me tornasse sua autora. Como discutido no livro, a autoria é um estado dificílimo, misterioso, porque nenhum curso ou mesmo projeto literário garante a condição de escritor. Há pessoas com livros publicados que não se consideram escritoras e outras que assumem essa posição antes de terminar um manuscrito. Ela nasce de um esforço de autointitulação. Por isso mesmo é tão desafiadora, especialmente para as mulheres, mais inseguras de si dos que os homens por uma série de fatores históricos, sociais e econômicos também explorados no ‘Diário’. Acredito que o livro nasceu da curiosidade sobre a condição de “escritora” e do desejo de tornar-me uma. O tema me interessa há anos e, aos poucos, fui percebendo em minhas pesquisas que os diários – gênero preferido desde a adolescência – são registros valiosíssimos, porque ali muitas mulheres que se dedicaram à literatura narraram os medos, alegrias e violências dessa transformação. Assim, para encarar minhas próprias tentativas de construir uma autoria, me uni a elas (Virginia Woolf, Sylvia Plath, Anaïs Nin etc.) em diário, ensaio e poesia, compartilhando de suas inseguranças amorosas, suas crises de identidade, sua paixão pela palavra, compondo uma única narrativa.”
Reprodução
“Diário do fim do amor”
• De Ingrid Fagundez • Fósforo • 216 páginas • R$ 79,90
Sobre os lançamentos
A Livraria Quixote promove, neste sábado, dois lançamentos da literatura contemporânea brasileira. Caetano Romão, de “Escrevo seu nome no arroz”, e Ingrid Fagundez, de “Diário do fim do amor”, autografam hoje os seus romances, lançados pela editora Fósforo, a partir das 11h, com mediação de Renato Negrão. Romance de estreia do paulista Romão, “Escrevo seu nome no arroz” é definido pelo poeta mineiro Edimilson de Almeida Pereira como uma “alquimia ficcional”. Já “Diário do fim do amor”, da gaúcha radicada em São Paulo Ingrid Fagundez (jornalista e professora do Instituto Vera Cruz), tem como atrativo “uma narrativa cativante”, acredita Silvana Tavano. A Quixote fica na Rua Fernandes Tourinho, 274, na Savassi, em Belo Horizonte.