Dalton Trevisan mentiu. “Mais de oitenta palavras não tem o seu pobre vocabulário”, garantiu em “Quem tem medo de vampiro?”. Logo ele, exímio manejador do dicionário e da gramática. Rei das elipses, também salpicou, nas mais de 700 narrativas publicadas, dezenas de corruíras, desgracidas, cantiquins. Ainda em tom falsamente autodepreciativo, decretou: “Quem leu um conto já viu todos. Se leu o primeiro pode antecipar o último – bem antes que o autor”.
Ah, é?
Nada disso.
Apenas mais um piparote de quem fez da palavra uma flecha envenenada, do conto o lugar do indizível, atracadouro de barquinhos de aflições, território dos desejos que nem às paredes confessamos. “Seu nome é Dalton Trevisan. Sua vítima, o leitor incauto. Sua meta é amedrontar, deliciando”, resumiu o contista mineiro Duílio Gomes (1944-2011), ao comentar “Mocinha de luto”, “Visita à alcova de cetim” e outras histórias sôfregas e lúbricas de “Contos eróticos”.
“É chover no molhado dizer-se que Dalton Trevisan possui um completo domínio da técnica e do conto – e do conto curto – mestria no seu manejo do instrumento – a linguagem – e um raro poder de equilíbrio do lírico com o trágico”, apontou o autor e crítico literário pernambucano Hermilo Borba Filho (1917-1976) na apresentação de “Mistérios de Curitiba”. “A fidelidade de Dalton Trevisan a seu mundo teve uma consequência absurdamente lógica: a fidelidade ao gênero que escolheu para nos comunicar este mundo; exemplo, se não único, pelo menos raro em qualquer literatura”, observou Carlos Heitor Cony (1926 - 2018), no prefácio da edição de 1979 de “Novelas nada exemplares” pela coleção “Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa”, destacando a “firmeza do autor em eliminar os ângulos mortos da narrativa e a mesma justeza em escolher o alvo e o ângulo exatos.”
Nova casa editorial de Trevisan, a Todavia celebra o centenário de nascimento do escritor com o lançamento de uma antologia, “Educação sentimental do vampiro”, e seis reedições: “Ah, é?”, “Chorinho brejeiro”, “Desgracida”, “O beijo na nuca”, “Pão e sangue”, “O vampiro de Curitiba”. Cada um dos volumes ganhou projeto gráfico arrojado e material inédito (trechos de diários, cartas e bilhetes para amigos), reunido na seção “Canteiro de obras”. “A ideia é fazer um passeio pelas muitas fases da obra de Dalton, dos contos do início da carreira, nos anos 1960, até os últimos, já nos anos 2000”, conta o editor Flávio Moura, lembrando que há outros dois títulos previstos para novembro deste ano: “Dinorá” e “Novelas nada exemplares.”
A editora promete lançar os 37 livros que Dalton Jérson Trevisan, morto em dezembro de 2024 aos 99 anos, publicou em vida iniciada no dia 14 de junho de 1925 em Curitiba. “Cárcere, província, lar”, a capital paranaense era assombrada por uma das criaturas mais conhecidas do criador: Nelsinho, bigode ralo, “cabecinha doida” sedento pelas carótidas de normalistas e viúvas de saia curta, à mostra o joelho “redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro”. Vampiro de Curitiba; o personagem que deu alcunha ao autor.
Este Pensar, que reproduz as antológicas ilustrações de Poty Lazzarotto (1924 - 1998) utilizadas em edições anteriores dos livros de Trevisan, traz entrevistas com o professor e tradutor Caetano W. Galindo, que dividiu a organização da antologia “Educação sentimental do vampiro” com o diretor teatral Felipe Hirsch, e com Christian Schwartz, biógrafo de Trevisan. Também há uma análise das primeiras reedições, assinada pelo professor e crítico literário Sérgio de Sá. Ainda na edição, o texto de apresentação de Rogério Faria Tavares para a coletânea “Os elefantes viriam pela manhã: treze contos à procura de Dalton Trevisan” e a resenha de Paulo Nogueira para a edição para crianças do conto “O ciclista”.
Para crianças?
Sim. Mas cuidado.
Convém deixar fora do alcance dos piás uma boa parte das histórias de um autor capaz de criar, nas próprias palavras, um inventário de crimes, loucuras, paixões e desamores e sair dele não apenas impune, mas coberto de superlativos e glórias: três vezes vencedor do Prêmio Oceanos, recebeu ainda o Prêmio Camões.
(Recebeu, claro, modo de dizer.)
Avesso a entrevistas, fotos e aparições públicas, Trevisan não deu as caras na premiação em 2012. Aos 86 anos, mandou um bilhete para representá-lo. “Não mereço, quem sabe. Mais não pude com as forças poucas. Não fosse indomável a língua. Não tivesse o conto mais fim que novo começo”, afirmou, em mensagem enviada aos organizadores do Camões. “Os muitos anos, ai de mim, já me impedem de receber pessoalmente o prêmio. Perdoe que o faça nestas pobres palavras”, complementou, no estilo que deixou marcas indeléveis na literatura brasileira. E que o próprio autor tentou (será mesmo?) apagar.
“Ora direis: um mestre do passado. Do passado, sim. Mestre, nunquinha. Ai dele, sem presente. E o futuro? Só cinzas. E só. E mais nada”, garantiu, em “Ei, vampiro, qual é a sua?”, cravando os dentes na própria jugular. Outra lorota. Dalton foi, é e continuará a ser o mestre da palavra certa e das mentes tortas. Segue vivíssimo, devassando virgens loucas, afiando facão e machadinho, latindo nas asas da saudade.
Vampiro de alma não morre.