Mulheres dão as cartas nas histórias de "Cadelas de aluguel"
Com referências a Tarantino e outros nomes pop, mexicana Dahlia de la Cerda cria contos de protagonistas femininas com sede de vingança
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Siga noMaria Fernanda Vomero
Especial para o EM
O México que emerge das páginas de “Cadelas de aluguel” (DBA), de Dahlia de la Cerda, autora convidada da próxima edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), não tem nada de idealizado, pelo contrário. Revela-se um território desigual e brutalizado, onde as mulheres que se encontram às margens são submetidas constantemente a diferentes formas de violência. Esse cenário é atravessado pela narcocultura, na qual os “grandes feitos” de traficantes e sicários são exaltados por meio dos “corridos” – gênero musical popular de tom narrativo – e à qual se associa uma certa estética visual que denota poder de consumo e popularidade.
O livro é composto por treze contos narrados e protagonizados por mulheres, e a maioria deles pressupõe interlocução. Ou seja, essas mulheres contam ou dirigem seu relato a alguém, revelando a intenção de serem escutadas – uma característica interessante na proposta da autora. A linguagem é marcada pela oralidade e por um tom ágil e coloquial, capturado com competência pela tradutora Mariana Waquil. Porém, os dilemas e questões das personagens são trabalhados apenas na superfície. Se por um lado isso evita uma “psicologização” desnecessária das protagonistas, por outro, as torna mais planas, menos nuançadas.
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Não há grandes variações na construção estilística das vozes, embora o rol de mulheres retratadas seja bastante diverso. Ocorre certa repetição tanto de fórmulas quanto de efeitos, sobretudo nos arremates (algo de frivolidade e de marotice, combinados). No entanto, a autora consegue afastar suas personagens de uma abordagem clichê, fatalista e vitimizadora. As mulheres são retratadas com agência, mostram-se donas de seus atos. Não sucumbem diante das adversidades nem dos adversários. A vingança aparece, para muitas delas, como um recurso desejável, um modo de buscarem justiça por conta própria.
Referências da cultura pop permeiam o contos – o próprio título remete ao famoso longa de Quentin Tarantino, “Cães de aluguel” (1992) e, ao longo do livro, aparecem tantas outras menções a filmes, músicas e artistas da atualidade. Podemos vislumbrar as personagens de Dahlia de la Cerda como expressões decalcadas do tempo presente, reflexos de um agora incontornável.
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“La huesera”, o último conto e o mais longo, parece resumir o projeto ético da escritora. Apresenta a figura dessa garota que, diante de um feminicídio, precisa aprender a recolher os ossos da mulher morta, juntá-los, contar sua história e deixá-la ir. Dahlia é cofundadora do coletivo feminista Morras help Morras [Minas ajudam minas], em Aguascalientes (cidade a quase 500 quilômetros da capital), voltado ao acolhimento de mulheres periféricas e ao apoio àquelas que desejam abortar. “Cadelas de aluguel” talvez seja seu desagravo literário – uma vingança artística? – diante de tantos ossos a recolher em seu país.
MARIA FERNANDA VOMERO é jornalista e doutora em Artes Cênicas (USP)
Trechos
“Desde pequena ando rodeada de pobreza e fome. Cresci na violência e querendo me juntar a uma gangue. Não porque queria aprontar, não me entenda mal, mas pra pertencer a alguma coisa; ter uma família, respaldo. Desde pequena circulo por este bairro, que é um dos mais violentos: tem briga todo fim de semana, e os caras andam com armas, bastões e até facas de cozinha pra defender o território. Aqui o pão de cada dia é o som das sirenes, mas esses judas só vêm pra recolher os mortos; aqui os porcos quase não entram.”
*
“O México é um monstro enorme que devora as mulheres. O México é um deserto feito de pó de ossos. O México é um cemitério de cruzes cor-de-rosa. O México é um país que odeia as mulheres. Fiquei obcecada pelo assunto como naquela vez que fiquei obcecada com ‘O senhor dos anéis’ e até aprendi élfico. Foi assim que encontrei a história de um pai que, em busca de justiça para a filha assassinada, foi a uma reunião do prefeito de sua cidade e lhe entregou pessoalmente o arquivo de investigação para que o ajudasse no caso. O político disse que ia ajudar, sim. Horas depois, o pai encontrou o arquivo no lixo.”
“Cadelas de aluguel”
• De Dahlia de la Cerda
• Tradução de Mariana Waquil
• DBA Editora
• 176 páginas
• R$ 72,90
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