Maria Fernanda Vomero
Especial para o EM
Em sonhos ou na vigília, ouvidos atentos talvez consigam identificar um som intrigante, ora débil, ora contínuo, que chega a despertar certa nostalgia de um passado remoto, até mesmo irrastreável. Vem de determinadas rochas da Península de Yucatán, no México; das areias do deserto do Egito; do entorno do Vesúvio, na Itália, ou ainda, de uma gruta da Galileia, na antiga Palestina. A música – sim, é uma espécie de canção – provoca estranhamento e encanta na mesma medida. E, a seu modo, conta as histórias da Terra, o planeta, e do húmus que o alimenta.
Esta é a premissa de “A canção por trás de todas as coisas” (Peabiru), da mexicana Gabriela Damián Miravete, nascida na Cidade do México em 1979, um livro de difícil classificação. Será uma coletânea de contos ou um romance coral?
Certo dia, uma escritora chamada Gabriela sonha com pedras iridescentes, sob a forma de naipes, que emitem um som curioso e vibram ao toque. Obcecada pelo tema, após alguma pesquisa, descobre que são placas do ópalo “sueño de enero”, um mineral que produz um fenômeno acústico e outros efeitos sobre os humanos.Também conhece a Sociedade Anônima para a Preservação e o Estudo dos Naipes de Ópalo (Sapeno), uma entidade científica desacreditada por acadêmicos e pelo governo mexicano.
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Gabriela aceita, então, escrever uma obra ficcional para ajudar a difundir as descobertas realizadas pela Sapeno. Em seis dos 12 relatos do livro, acompanhamos os desdobramentos da investigação sobre os naipes de ópalo. No entanto, os demais contos parecem ser independentes. Apesar de se passarem em tempos e territórios distintos, têm em comum o reconhecimento de uma inquietante e variada expressão telúrica.
Há a história de uma garota que cai na fenda do solo da Cidade do México depois de um terremoto, por exemplo. Ou a de uma espeleologista que descobre um dos maiores santuários paleolíticos do mundo. A sequência heterogênea de histórias resulta em um interessante mosaico, que mistura habilmente um imaginário geológico com estudos e dados reais – o livro traz, além de numerosas notas de rodapé, diversas referências bibliográficas ao final. Mesmo com esses adendos, o texto é límpido, poético e bem lapidado. A tradução ao português ficou a cargo de René Duarte.
Cabe ao leitor, à leitora, a tarefa de conferir sentido à combinação inusitada de contos (ou capítulos). Se os naipes de ópalo guardam a memória da Terra sob a forma de um fenômeno acústico, uma leitura possível seria considerar os relatos aparentemente autônomos como registros de experiências que foram sendo armazenadas nos minerais e incorporadas à canção que está por trás de todas as coisas.
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Em tempos de discussão sobre a centralidade ou não do humano nas dinâmicas do planeta, Gabriela Damián Miravete chama a atenção para as manifestações geológicas que, à sua maneira, também carregam um discurso: são os gritos da Terra. Em seu livro, a escritora, cujo interesse está na literatura de cunho científico e especulativo, nos convida a fabular futuros: como será a música que nós, sujeitos do século 21, legaremos aos ópalos “sueño de enero”?
MARIA FERNANDA VOMERO é jornalista e doutora em Artes Cênicas (USP)
Trecho
De “A canção por trás de todas as coisas”(Tradução de René Duarte)
“Nas rochas ao redor, as patas que batem em uníssono contra a pedra se posicionam. As criaturas observam o sonho múltiplo com seus olhos de quartzo e bronze, dois mecanismos inorgânicos perfeitos, minerais, que brilham com reflexos de cobre. Eles me devolvem o olhar, que, à sua maneira, é um sorriso secreto. Rio, e o som da minha risada se une ao crescente coro de vozes com a incredulidade de quem se rende diante das portas abertas do possível. Esses seres não estão vivos da mesma forma que Dacia e eu estamos. E, ainda assim, é a mesma substância que nos move.
Contra a luz, vemos seu voo leve, buscando lugar sobre as rochas. Com as asas dobradas sobre o dorso, como se fossem a vela de um barco, escalam ou descem pela parede de maneira graciosa e leve, como se fossem feitas da nuvem do crepúsculo. Como pode haver tanta leveza na carne mineral? As escamas de ópalo protegem um tecido rosado, quase translúcido, que vibra como um tímpano para emitir seu canto. Os corpos que conseguimos ver são diminutos como uma lagartixa ou grandes como um gato. Suas quatro patas pisam firme na rocha, produzindo um estrondo que se expande em ondas subterrâneas e atinge a pedra adormecida, os compostos essenciais que se transmutam para dar forma à matéria do mundo, a aérea, a ígnea, a aquática, a telúrica. A do sonho.”
“A canção por trás de todas as coisas”
• De Gabriela Damián Miravete
• Tradução de René Duarte
• Peabiru
• 267 páginas
• R$ 49
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