LITERATURA

Leia trecho de 'A bala dos desarmados', de Francisco de Morais Mendes

Escritor e jornalista faz lançamento de seu quinto livro neste sábado (23/8), em BH. Leia o conto 'Corredores'

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Corredores

Seguimos em direção ao parque. O dia apenas começando com sua brisa e seus ruídos. O céu limpo, com duas nuvens escuras sobre a Serra. A claridade não me favorece, mas, ao chegarmos ao passeio do parque em direção ao portão de entrada, o sol deixará de bater direto no meu rosto. Acelero mais um pouco, e ele talvez escute minhas passadas e queira também aumentar a velocidade. Está uns vinte metros à frente, calculo, atingiu o outro lado da avenida, e estou no canteiro central; tenho que me orientar em meio aos carros, poucos a esta hora. Quando consigo cruzar a avenida, ele ganhou uma boa vantagem, outros vinte metros. Agora estamos os dois no mesmo passeio da avenida, ladeando a grade do parque, e aumento o ritmo sem perder o controle da velocidade.

Dentro do parque, ele desaparece da minha visão por instantes, e posso perdê-lo na bifurcação dos caminhos que se desdobrarão em outras bifurcações, por isso acelero mais e, ao ultrapassar o portão, consigo vê-lo numa baixada, e ele segue, sem olhar para trás, ao contrário do que vinha fazendo, talvez acreditando que eu o tenha perdido. Avanço com mais ímpeto, até de novo tê-lo inteiramente no meu campo de visão, ele deve ter voltado a ouvir meus passos, piso em folhas secas e aumento a pressão dos pés contra o piso para evitar um escorregão, ele volta a olhar para trás, medindo a distância entre nós. Entramos numa área plana, e diminuo um pouco o passo, não o perderei de vista, conheço bem os caminhos do parque, também meu território de treinamento, e antevejo que ele buscará a saída da margem do rio, é nessa direção que avança.

Ele poderá mudar de atitude, caso se sinta muito acuado, mas se fizer isso nosso jogo não terá terminado. Se ele imaginar que o deixarei escapar, cometerá um erro, e eu o alcançarei, e ele será jogado ao chão quando eu tocar o seu tornozelo, e aí sim: será o fim da história. Ele pode ter errado ao acreditar que, por eu ser um velho, me cansaria antes dele e desistiria de pegá-lo. Se for essa sua crença, aí estará outro engano, pois tenho energia, disposição e resistência para mais de duas horas de corrida, e não estamos correndo ainda nem por dez minutos.

Ele se comporta como eu previ, toma a saída da margem do rio. Não teremos automóveis a nos interromper, pois os veículos que cruzam o rio o fazem por cima de viadutos. Ele acaba de saltar para o asfalto e chegou ao outro lado, quando eu atravesso o portão para correr primeiro paralelamente aos carros e, em seguida, aproveitando a distância entre um veículo e outro, me lançar também em direção à amurada do rio. Aos carros mistura-se o barulho dos ferros dos feirantes montando suas barracas.

Agora seguiremos concentrados apenas em nossos passos e na calçada, com suas saliências, ressaltos e partes estragadas, pois um tropeção também daria por finda a jornada. Como costumo brincar, se corremos atentos, não corremos riscos. Tenho mais uma vantagem: a garrafinha de água junto ao cinto. Fácil de manusear, com tampa retrátil, tomo um gole e me sinto refrescado. O sol agora bate de lado em nosso rosto e começa a subir. Então me lembro do sonho dessa madrugada, com aranhas.

Um grupo de aranhas disputando uma maratona e eu correndo no meio delas, sem me definir humano ou aranha, quando passa por cima de nós uma aranha com patas longuíssimas, facilmente venceria todo o grupo com poucas passadas de suas oito patas, mas uma das aranhas menores pinçou uma das patas da gigante, cortou-a e a jogou para o lado, e logo outra fez o mesmo, e a gigante perdeu as patas até parecer uma ave pernalta com apenas duas patas, e logo em seguida perdeu mais uma e saltitou um pouco mais antes de desabar no chão diante do grupo do qual eu fazia parte. Tive de contornar a aranha e agora contorno o sonho, porque não é bom deixar o pensamento ir para outro lugar enquanto corremos, a garantia de uma boa corrida é a concentração no que se está fazendo, pensar em cada passo, sentir a musculatura, a pisada, e evitar qualquer distração. Deixarei para mais tarde a interpretação do sonho, se é que há alguma.

Hora de aumentar a pressão sobre ele, avanço mais rápido até chegar a uns oito ou sete metros. Por ora, é o suficiente. Ele percebe e quer aumentar a distância, mas não pode tanto, está próximo ao limite e sabe que, se não se poupar, será logo apanhado. Mantenho-o assim, a uma boa distância, de modo a poder alcançá-lo quando quiser.

Chegamos a um ponto da avenida em que o trânsito é ainda mais escasso, só aumentará mais tarde, e ele resolve deixar a calçada da margem do rio. Escolheu a rua mais plana da região e corre em direção a ela. No início da rua há um aclive, depois ela se torna plana, e em alguns quarteirões haverá pequenas elevações, e voltaremos para a região do parque. Improvável que ele queira voltar ao local onde tudo começou, mas são possibilidades que adianto para rever minha estratégia, antecipar o percurso e evitar erros.

Um corredor solitário vem na outra margem do rio, onde ainda há sombra por causa dos altos muros da linha férrea, e acena para nós. Retribuo o aceno pensando no maior problema das jornadas extensas. O grande problema das corridas é a solidão. Quando o sujeito imagina o quanto falta para atingir o final e ganhar uma medalhinha de participação no evento, bate uma tremenda solidão, soube disso antes de experimentar na minha própria pele, com um súbito suor frio, porque um amigo me contou como era disputar uma maratona. Pensar nisso é também desvio, e volto a me concentrar.

Me pergunto por que, estando eu no controle, ainda não quis alcançá-lo, por que insisto, se já podia ter terminado a perseguição e tomado um táxi de volta para encontrar minha mulher. Ontem estava me sentindo cansado, um cansaço cheio de rochas, de veredas, mas hoje acordei com um ânimo irreconhecível e, por isso, continuo.

Depois do fim da rua plana, virá uma enorme praça e a avenida bastante arborizada. Ele poderá abraçar um tronco de árvore e de cansaço deslizar para o chão, mas, se isso não acontecer, continuará até o final da avenida, onde estão a igreja e seu imenso jardim de arbustos com a bela topiaria, e decido que ali será o ponto final, se chegarmos até lá. A igreja fica a três quarteirões de onde tudo começou. Certamente minha mulher não deixou o local, esperando a minha volta. Estará preocupada com a demora, e talvez haja em volta gente que presenciou o começo de tudo.

Nada parece detê-lo, o cansaço o atinge, e ele continua, atravessa a praça, toma a avenida pelo canteiro central. Um homem acaba de abrir a loja de loterias e, enquanto coloca na calçada um estandarte com o valor dos prêmios, grita para nós: a Mega-Sena acumulada corre hoje, corre hoje! Não chego a rir, nem sei se ele riu do grito do sujeito, seus ombros não estão eretos, o cansaço aumenta, duvido que consiga chegar à igreja, mas ponho a dúvida de lado para que eu também não arrefeça, é preciso manter o calor que nos impulsiona, e agora, bastante próximo dele, noto, não consegue mais obter qualquer vantagem, pois chegou ao limite. Já escolhi onde tudo terminará, então prosseguimos.

Não esperava por isso, mas um sujeito que parece nos ter visto de longe começa a atravessar a avenida no passo de quem calculou alcançá-lo e certamente tentará derrubá-lo, e isso eu não posso permitir. Acelero mais, emparelho-me com ele, justo quando o sujeito começa a abrir os braços, e dou no homem um trompaço; desequilibra-se e estatela de costas no chão. Quando entender o que aconteceu, estaremos longe. O encontrão me tirou um pouco da velocidade, e ele ganhou nova dianteira, mas também não deve ter entendido nada, por que eu o protegeria se meu objetivo é pegá-lo, e esse desentendimento o deixou confuso e o fez perder terreno, e certamente, a essa altura, ele já percebeu que não dita o ritmo da corrida, são minhas as decisões. Seguimos deixando as árvores da avenida para trás, e serão mais dois quarteirões, e, depois de uma pequena subida, se ele não mudar de rumo, chegaremos à praça da igreja.

Começo a sentir também o cansaço, a solidão dos corredores, o suor frio entre a roupa e a pele, a cãibra mandando aviso, é quase hora de acabar com isso. Entramos na praça, ele salta uma sebe e se aventura pelo gramado onde os arbustos ganharam a forma de retângulo, salto também, e ele saltará outra vez terminado o gramado, então me aproximo mais, chegou a hora de acabar com a brincadeira, hora de derrubá-lo antes do salto, mas, em lugar de uma coisa ou outra, ele cai, ele cai, ele desaba. Ainda com o impulso da corrida, desliza um pouco pelo gramado, e eu não posso parar de uma vez, dou mais uns passos circulando em torno dele e paro fazendo sombra sobre ele, e ele abre a boca, os lábios ressecados procuram o ar, e me olha com seus grandes olhos de menino assustado, olhos que perdem o brilho, suspira algumas vezes em busca do ar que não acha, e uma última tentativa é suficiente para eu perceber que ele se afasta rapidamente, aproximo o rosto do dele, e nem fios de barba ele tem ainda, apenas um pequeno buço que uma linha de suor faz brilhar.

Ele abre os dedos e solta a bolsa, ouço seu último suspiro roufenho, contorno a sebe e começo a descer a rua até o ponto onde estava e à minha espera continua minha mulher, mais duas pessoas e dois fardados. Agora estou suando muito, o suor escorre pela testa, cai nos olhos e segue pelo rosto, sinto toda a pele porejar, e o soldado me pergunta como recuperei a bolsa e se peguei o assaltante. Ele largou a bolsa, seguiu, e correndo deve estar até agora, eu digo. Não vamos dar queixa, é inútil, acrescento, e o soldado faz um gesto de desdém, como se confirmando que é mesmo inútil. Dou o braço a minha mulher, aceno para as pessoas, e proponho a ela terminarmos nossa caminhada. 

"A BALA DOS DESARMADOS"

De Francisco de Morais Mendes

Sinete Editora

190 páginas

Lançamento neste sábado (23/8) no Spiral com Café (Av. Carandaí, 418, das 10h às 13h)

DEPOIMENTO

Por Francisco de Morais Mendes

"Na busca de fios que unem os contos de um livro, por mais variada que seja a temática das histórias, o ponto de chegada mostrará as obsessões do autor.
Na minha escrita a principal obsessão talvez seja a de querer desentranhar o absurdo, o muito estranho das situações comuns, cotidianas.
Assim, o encontro entre pessoas e o contato com filmes, fotografias, canções e livros podem desencadear reações surpreendentes, mudando o rumo de vidas, às vezes com consequências trágicas. Não é muito diferente do que acontece na “vida real”. A vida é cheia disso que não cessa de nos espantar e de nos surpreender.
Talvez por esta razão minhas histórias não acabem bem. Mas isso não importa. Importa é que sejam bem-acabadas, essa outra obsessão que traz consigo ressonâncias da própria literatura.
Às vezes imagino que meus mestres estejam olhando por cima do meu ombro: Rubem Fonseca, Clarice Lispector, Julio Cortázar, Carlos Drummond de Andrade e Osman Lins são alguns dos me vigiaram na escrita de “A bala dos desarmados”.
Mas nada me parece mais absurdo do que me ver escrevendo sobre o que escrevo. Isso, sim, é muito estranho."

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