POESIA

Primeira leitura: 'Ano passado', de Júlia de Carvalho Hansen

Leia trecho do novo trabalho da escritora, que será lançado neste sábado (23/8) em Belo Horizonte

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Júlia de Carvalho Hansen

Ser livre é às vezes estar confortável
na ideia de não ser ninguém e às vezes
se sentir melhor sendo unicamente a si

os pés plantados no barro
a cabeça como um arco celeste
expandindo e relaxando.

Existe o gesto, a fruta madura
a cura e o soslaio — de resto livre
é quem pisa o próprio caminho

quando o reconhece.

*

“31 de março”

Uma mistura de cupins e erros
foi o que me trouxe até aqui.
Metade desta constatação é cansaço
a outra metade é a força da realidade.
Os labirintos forçam a amizade comigo
é assim com quem gosta da lábia
da vida que traga e assopra
com a força do furacão pra fora e pra dentro
como que pra me alongar ou entristecer
eu enrolo o queixo no peito
o que me faz sorrir embora desgastada
faço a minha respiração mais profunda
no centro de mim
sinto o cheiro do colo
da minha mãe
da minha avó também
da tataravó que eu não conheci
e de quem herdei a cabeça
se estão em mim
se estão comigo
eu sou como os cupins
eu não estou sozinha

“8 de julho”

Revisito pouco as nossas memórias
vou menos como turista
sou especialista
do momento muito simples
no qual a sua doçura nos dilatava
e eu acreditava

neste momento
o amor tinha a cadência da eternidade
a tua ternura era a verdadeira natureza do mundo
capaz, inclusive, de tomar pelas mãos as abelhas
salvando da extinção também as flores

deixando-as zunir.
Nós também éramos sempre transtornados pela primavera.

*

“23 de agosto”

Não sei se é de viver tantas coisas difíceis
elas vão se emaranhando numa alma também chamada envergadura
eu preferia que a alma se chamasse escudo
tanta é a força com que enfrento o mundo
mas não sendo talvez o espírito seja um cavalo correndo
ou as facas com que os meus ancestrais
cortaram o ventre de outros ancestrais.

Os ancestrais usaram o dentro do meu corpo de esconderijo
e agora se aproveitam do meu corpo como um recipiente.

Sou um copo onde os ancestrais bebem
o sangue que escorre das montanhas
também chamado de água mineral.
Água de nascente.

O ancestral gosta do gosto
que está nas formas da terra
as pedras, os búzios, as sementes.
São lições diferentes da espera.

Serei eu enquanto ouço os vivos o quê?
Ouvi dizer que os mortos já sabem
e, lá no fundo, eu sei
nem eles possuem razão.

Mas eu — feita de carne e curiosidade
com os pés ensimesmados pela gravidade
eu estou viva — não sei se consigo aprender.


“9 de dezembro”

Ter a memória clara
de um outro tempo
que não foi vivido

carregá-lo enquanto
o meu próprio destino
é capaz de me distrair

até um dia
a memória e o destino
deixarem tudo em aberto.

*

O meu nome
como um segredo
surge pela tua boca.

Tudo que floresce
em mim tem
o teu nome


"UM DIÁRIO EM FORMA DE LIVRO DE POEMAS"

“Considero ‘Ano passado’ é um diário em forma de livro de poemas. Comecei a escrevê-lo no meio da pandemia, quando, como aconteceu com tantas pessoas, a minha vida pessoal atravessava um momento difícil. Desde a publicação de ‘Romã’, em 2019, eu não encontrava entusiasmo para escrever. Então percebi que, se não me entregasse à escrita, não sobreviveria emocionalmente. Esse livro nasceu como um gesto de sobrevivência. Como escrevo diários desde a adolescência, senti que era o momento de publicar poemas que elaborassem esse gênero íntimo e cotidiano. Conforme o livro foi aparecendo entendi que não se tratava apenas da minha crise individual: o livro precisava tratar de mudanças coletivas. Por isso, nele aparecem temas como a crise climática. Decidi dividi-lo nas estações do ano, já que, em pouco tempo, talvez deixem de existir. ‘Ano passado’ é também um livro sobre a memória e o seu apagamento. Mas, acima de tudo, é um livro sobre resistir com amor e liberdade em tempos difíceis. E sobre acreditar que a vida guarda sempre a capacidade de transformação, pois o tempo é, inevitavelmente, metamorfose.” (Júlia de Carvalho Hansen, sobre “Ano passado”)

“Ano passado”
• De Júlia de Carvalho Hansen
• Editora Nós
• 160 páginas
• Lançamento neste sábado (23/8), às 11h, em bate-papo da autora com Maria Carolina Fenati na Livraria Jenipapo (Rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi)

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