Aline Bei usa sinceridade para combater cinismo literário
Escritora paulistana, que estará em BH na próxima terça-feira, lança o terceiro romance: "Uma delicada coleção de ausências". Leia análise do livro
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Especial para o EM
Com seu romance de estreia, “O peso do pássaro morto”, a paulistana Aline Bei ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura de 2017. Era um romance inusitado, corajoso, diferente. No segundo, “Pequena coreografia do adeus”, em 2021, Bei dobrou a aposta: seguiu no mesmo estilo e escreveu um romance ainda melhor. Agora, com o terceiro, em 2025, “Uma delicada coleção de ausências”, já se pode dizer que Bei está construindo uma das melhores e mais consistentes carreiras da literatura contemporânea brasileira.
Em larga medida, a literatura do século 20 foi dominada pela ironia e pelo cinismo, por livros autorreferentes onde cada frase tenta ser mais espertinha do que a seguinte, onde uma atitude blasé perante a vida era a marca de seus muitos anti-heróis. Poucos romances simbolizam tão bem a amargura elitista do nosso cinismo irônico quanto “As perfeições”, de Vincenzo Latronico, publicado no Brasil pela Todavia e indicado ao Prêmio Booker de 2025.
Desde a década de 1990, porém, especialmente a partir dos ensaios de David Foster Wallace, essa maré começa a refluir. Infelizmente, todo poema ruim é sincero. Nada mais fácil do que fugir da ironia e recair no melodrama, evitar o cinismo e resvalar no cafona. O grande mérito de Aline Bei é justamente transmitir uma sinceridade tão potente e tão imediata que arrebata a pessoa leitora, ao mesmo tempo em que não abre mão de experimentações literárias e gráficas que elevam sua obra ao nível de grande arte.
Naturalmente, a literatura por definição é artifício, ou seja, mentira. Quando se diz que um texto “transmite sinceridade”, não é que ele reproduz “sinceramente” as emoções ou os fatos da vida da autora. (Aliás, como Bei não escreve autoficção, nunca precisamos nos preocupar com a “verdadeira” Aline Bei, que está no livro somente como sua autora, não como personagem disfarçada piscando o olho para nós.)
O cinismo literário reinante na nossa prosa, essa atitude blasé para a vida e para a própria literatura, é uma afetação nervosa que foge ao máximo de qualquer sentimento que possa parecer autêntico, intenso. Do ponto de vista de nossos escritores irônicos e sofisticados, o que poderia ser mais cafona do que uma emoção forte levada ao seu limite mais extravagante?
A sinceridade potente das emoções narradas por Aline Bei não é, de modo nenhum, a “escrita naif” de uma jovem escritora narrando o que “verdadeiramente” sente, mas sim uma criação literária essa sim altamente sofisticada. O que espanta em seus livros, página após página, é justamente a coragem de se afundar, de peito aberto, em abismos cada vez mais profundos de tragédia e de dor.
Nascida em 1987, formada em Letras e Artes Cênicas, Aline Bei é herdeira e discípula confessa de dois dos maiores artífices vivos da língua portuguesa, Lobo Antunes e Mia Couto. Ainda não está no nível deles, naturalmente, mas quem está? Bei é jovem, tem tempo de alcançá-los e talvez superá-los. Mas, lendo sua obra, já tomamos sustos que nos remetem a um pensamento recorrente ao ler esses mestres: “Eu não sabia ser possível escrever assim!”. Mas é. Basta coragem.
No momento de maior impacto emocional de um livro repleto de tragédias como “O peso do pássaro morto”, a protagonista, num paroxismo de dor, solta um grito... pelo cu. É um momento forte e inusitado, belíssimo e devastador. Queremos cair de joelhos no chão junto com a personagem.
O “grito pelo cu” talvez até soe engraçado ou estranho aqui, citado a frio, em uma resenha. Mesmo no livro, dentro de todo um contexto, talvez não funcione para qualquer leitora. Mas nem todas as invencionices verbais de Lobo Antunes e Mia Couto, ou mesmo de Guimarães Rosa ou Clarice Lispector, funcionaram. Quem leva a língua ao seu limite e testa novas construções está sempre escrevendo no fio da navalha do errado, do estranho, do kitsch. Funcionando ou não, o grito pelo cu é um símbolo de que o grande atributo da escrita de Bei é uma coragem sem limites, admirável mesmo quando aqui e ali não funciona.
Se avaliássemos literatura como ginástica olímpica, Bei poderia até tirar um 8 ou 9 na Execução, mas levaria sempre 10 em Dificuldade.
A literatura espraiada na página
Há muito não se via, no Brasil, uma autora com tanto tesão em se divertir brincando com a parte gráfica de seus livros.
O romance “O peso do pássaro morto” se apresenta visualmente como um livro de poesia concreta: quase toda linha é quebrada, em pontos diferentes, formando verdadeiros desenhos nas páginas. As frases começam com minúsculas e muitas terminam sem pontuação. Espaçamentos, indentações, itálicos e marcas de pontuação em geral servem às necessidades emocionais do enredo, não às convenções da gramática. De repente, no meio da frase, uma ou outra palavra é capitalizada, chamando atenção para si. O título de cada uma das partes segue uma idade da protagonista: “Aos 8”, “Aos 17”, etc, e são apresentados graficamente descendo pelas páginas: “Aos 8” está no topo de sua respectiva página e o título da última parte, “Póstumo”, no rodapé.
No segundo romance, “Pequena coreografia do adeus”, ela segue fazendo experimentos gráficos, agora com fontes diferentes, em tamanhos alternados, ocasionalmente em caixa alta. Em seu novo lançamento, “Uma delicada coleção de ausências”, à medida que a narrativa vai se tornando mais e mais sufocante, o texto vai ocupando menos e menos espaço na página: no começo, as linhas se espalham de um lado a outro da página, como em um livro comum; no final, ocupam apenas um fiapo na coluna direita.
Essas extravagâncias gráficas são propositalmente difíceis de descrever – o que, aliás, é sua justificativa. Fica o convite para as leitoras folhearem os livros em sua livraria de rua preferida e conferirem.
Ler Aline Bei talvez seja o mais perto que uma leitora média chegue da experiência de ler um manuscrito medieval: antes da imprensa, cada manuscrito era único e seu formato gráfico dependia das idiossincrasias dos autores e copistas. Hoje em dia, cada vez mais edições de clássicos medievais se esforçam não para padronizar o texto segundo nossas convenções contemporâneas, mas sim para levar a leitora atual para o mais perto possível do manuscrito concreto. Por exemplo, uma edição recente de “A morte de Artur” reproduz várias das características gráficas de um dos manuscritos originais, como a capitalização idiossincrática de palavras e escrever em fonte gótica os nomes próprios de personagens.
Quando uma artista literária, seja Aline Bei no século 21 ou Thomas Malory no século 15, escolhe arbitrariamente colocar uma palavra em maiúsculas, existe algo que ele ou ela está querendo nos dizer. Cabe à leitora interpretar.
A literatura transmitida na voz
A literatura da Idade Média também era fortemente oral: apesar de os manuscritos serem compostos de forma tão meticulosa e tão única, os autores já escreviam sabendo que suas obras seriam mais ouvidas do que lidas. Hoje, ainda existem obras que pedem para serem consumidas oralmente. Quem não gostaria de ouvir a voz de Guimarães Rosa estabelecendo para nós a cadência, as pausas, o sotaque de Riobaldo?
Pois hoje, com a popularização dos audiolivros, tornou-se cada vez mais comum que as pessoas autoras narrem seus próprios títulos. A experiência é sempre enriquecedora, mesmo quando a autora se revela uma narradora fraca. Não é o caso de Aline Bei, também atriz e com pós-graduação em escrita performática pela PUC-Rio.
Poucas obras literárias ganham tanto ao serem lidas em voz alta por suas autoras quanto a de Aline Bei. Ao som de sua voz, as idiossincrasias gráficas adquirem novos significados agora sonoros. A leitora, convertida em ouvinte, percebe que ainda havia muito a entender, a curtir, a absorver. De repente, entendemos porque a quebra da linha foi naquele ponto, porque aquela palavra está em caixa alta.
Os três romances de Aline Bei, editados pela Companhia das Letras, estão disponíveis também no formato de audiolivro, todos narrados por ela, na plataforma Audible, que pertence à Amazon. Os títulos podem ser comprados individualmente e ouvidos no celular, tablet ou PC.
O melhor jeito de fruir a obra de uma das melhores artistas em atividade no Brasil é simultaneamente lendo e ouvindo, deixando que a voz da autora ilumine os aspectos gráficos da página enquanto nos entregamos totalmente à experiência.
Por onde começar
Os três romances de Aline Bei são igualmente ótimos. “O peso do pássaro morto” é o mais dolorosamente melodramático: a história de uma mulher que sofre uma série de tragédias, com destaque para a importância de seu cachorro. “Pequena coreografia do adeus” aborda a relação entre vida e arte, mostrando as andanças de uma moça que transita entre a dança e a literatura. Ambos são inovadores e impressionistas. Seu último romance, “Uma delicada coleção de ausências”, mais convencional e mais narrativo que os anteriores, retrata a convivência entre uma neta, uma avó e uma bisavó na mesma casa.
ALEX CASTRO é escritor, autor de livros como "Outrofobia" (2015), "Atenção" (2019) e "Mentiras reunidas" (2023).
Trecho
(De “Uma delicada coleção de ausências”)
“talvez fosse essa devoção de Laura, talvez Margarida quisesse que a neta a adorasse menos. ou que se comportasse mal, não lhe fizesse favores, acima de tudo que não pegasse em sua mão com tamanha confiança. e que jamais se preocupasse com ela, que continuasse a se perder nas horas, mas isso também terminaria. logo, logo a menina ia migrar para o outro lado, e precisaria de um quarto só seu.”
Papo em BH na próxima terça
Aline Bei estará em Belo Horizonte na próxima terça-feira para participar do projeto "Sempre Um Papo". O encontro com a autora, na Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais (Praça da Liberdade), começa às 19h30 e terá mediação do jornalista Afonso Borges. Depois do bate-papo, Aline Bei vai autografar seus livros mais recentes. A entrada é gratuita, por ordem de chegada.
Do “gozo luminoso” ao “estado de neblina”
Em depoimento ao Estado de Minas, Aline Bei detalha a criação dos três livros
Aline Bei
Especial para o EM
“Escrevi o ‘Pássaro’ durante uma oficina do Marcelino Freire. Trabalhava nos capítulos pela manhã, à noite lia para a turma, que costumava me dizer meu Deus, e o que mais? O livro foi todo confeccionado nesse fluxo que costumo nomear de gozo luminoso. Um transe típico das primeiras vezes, que me revelou a possibilidade de escrever romances, pois até então me aventurava apenas por textos mais curtos.
Já a ‘Pequena’ foi o processo mais difícil que vivi como escritora. A recepção positiva do ‘Pássaro’ me fez perguntar se eu tinha mais alguma coisa a dizer, e como. Aos poucos descobri a forma, quando me deixei ser levada pela voz da personagem Júlia em seus dilemas artísticos e existenciais, além dos importantes diálogos com as minhas editoras na Companhia das Letras, Camila Berto e Stéphanie Roque.
A ‘Delicada’ foi meu livro de composição mais saudável. Tive grande prazer estético durante a descoberta de sua linguagem, também porque fiz uma pós em Escritas Performáticas durante os primeiros anos de processo. Quando me vi sozinha, foi apenas para reescrever a versão trabalhada na pós, e então iniciar o diálogo com as minhas editoras. Numa dessas conversas, ao levantar o rosto de minhas anotações, percebi que estava lidando não com um livro (ou dois) mas com uma tríade que se dobrava sobre si mesma e me fazia avançar em direção ao que procuro agora, no quarto livro, ainda em estado deneblina.”
“Uma delicada coleção de ausências”
• De Aline Bei
• Companhia das Letras
• 288 páginas
• R$ 69,90