“Tudo o que posso fazer é me alembrar, e, me alembrando, contar. E quando conto, a confusão toma outro rumo e se tudo dá parecença de acontecer repetido, é d’outro modo que as cousas são”. Em “Depois do trovão”, um narrador idoso, próximo da morte, coleciona lembranças “aleijadas” em um sítio no sertão da Paraíba. Com pessoas escravizadas a seu serviço, ele recorda um passado de desencontros que estão na cor da pele, na assimetria das relações e nas formas de estar no mundo. Mestiço nascido em um aldeamento, Auati conta essa história passada naquele universo desolado de miséria e calor. De “couro de mameluco”, ele é fruto da relação entre o padre jesuíta Pay Deré e uma mulher indígena, e foi levado pelo pai quando criança para missões de catequese dos chamados “bárbaros” – os indígenas.

Micheliny Verunschk retoma a proposta de ficcionalizar eventos históricos, como no aclamado “O som do rugido da onça” (2021). Temos aqui um relato contundente do Brasil colônia, momento da Guerra dos Bárbaros, levada a cabo no século 17 nas antigas capitanias do nordeste brasileiro. A partir desse regime autoritário de dominação da Coroa portuguesa, de um mundo rural em que as chamadas guerras justas existiam para catequisar e pacificar os revoltosos, a escritora pernambucana relata o extermínio dos povos originários e do quilombo dos Palmares.

Vagueiam por ali nativos, jesuítas, colonos, mulheres e crianças. Tudo transita, a começar pelo narrador, que avisa logo nas primeiras páginas ter três nomes, sendo o terceiro deles Joaquim Sertão (o segundo conheceremos apenas na segunda metade do romance). São muitas neblinas referentes à identidade do personagem, ser que habita espaços intersticiais, “meio que branco, meio que bugre”. Ele relata violações e traições, tecendo suas andanças pelas trilhas do sertão em capítulos curtos na construção de um grande mapa da guerra. À medida que narra batalhas, enuncia também a errância do próprio nome, signo perdido na sequência de apagamentos, choques culturais e carnificinas.


O sertão é paisagem política onde quem manda é o forte, conforme lição aprendida nas páginas de Guimarães Rosa, cujo “Grande sertão: veredas” completa setenta anos em 2026. Historiadora e poeta, Verunschk encara um tema vigoroso da literatura brasileira, enfrentando o grande pai dessa linhagem com valentia. Na tarefa de visitar a geografia sertaneja, a autora confronta séculos de história e de literatura de autoria masculina - andaram por essas brenhas ninguém menos que Alencar, Euclides da Cunha, Graciliano e João Cabral. Armada até os dentes (mas sem perder a ternura), dialoga com personagens roseanos e trabalha com a linguagem de forma inventiva, explorando a oralidade de uma prosa cujo andamento faz fronteira com a poesia.

O perigo da reverência excessiva está logo ali, mas “Depois do trovão” não escorrega na armadilha. Pilhando aspectos desse universo rude, Veruschnk cria uma trama cuja diferença inside no caráter testemunhal do ponto de vista indígena, na perspectiva de alguém cindido entre mundos. Nesse sentido, o protagonista remete ainda a “Meu tio o Iauaretê” (1961), conto admirável de Rosa sobre um caçador de onças, filho de mãe indígena e pai branco. Ao longo do texto, os nomes do protagonista-narrador são também cambiantes e instável sua condição. Auati é parente do onceiro roseano, se considerarmos a forma com que os próprios indígenas designam relações de proximidade. Eles transitam entre o saber das matas e o discurso do colonizador.


Mas ser mediador de mundos distintos pode ser missão maldita, sobretudo quando esses sujeitos contribuem para a morte dos semelhantes. Seja na mão do jovem Auati ao arrancar as orelhas dos tapuios assassinados nas batalhas ou nos seus dedos que escrevem cartas em nome de feitores analfabetos, servindo à língua do Império.

"Guerrilhas", litografia do alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858)

Arte Soraia Piva sobre fotos


Pay Deré, à semelhança de tantos outros religiosos que andaram pelo país, ecoa as contradições do sistema colonial. Pai zeloso, o jesuíta é homem “de delicadas hipocrisias” e finge não ver a barbárie contra as mulheres indígenas. Derrama “lagriminhas” pela guerra e abençoa os corpos degolados dos bugres, mas não condena o extermínio daquelas populações: “Era essa a sua natureza, foder e rezar”. Lugar de vício, cobiça e luxúria, o sertão une religiosos e colonos pela corrupção, a começar por personagens como o feitor Chibante e o comandante Estrondoso, ambos a serviço d’El-Rei e da Santa Igreja. Sua missão é corrigir a fala, moldar comportamentos e domesticar corpos na base de castigos e violência extrema.
Auati é vulnerável a várias formas de opressão, mas traz as mãos sujas pelo sangue da guerra a quem serviu por toda a vida. Na tentativa de recuperar a memória enevoada pela velhice, narra um percurso acidentado, em que coexistem posições – ele é a um só tempo alvo fácil e perpetrador da destruição de seus iguais. Dentro desse conturbado existir, ainda há espaço para o amor, vivido sem fronteiras rígidas ou moralismos.


No romance, vários gêneros literários se justapõem. Ao relato do narrador se somam missivas de religiosos e governadores ao soberano, trechos de sermões, causos assustadores de personagens como o velho Atanásio Pezão, além de uma reportagem de divulgação científica. Nesse misto de inventário e crônica de guerra que fede “a salitre e merda e urina e sangue”, é preciso rasurar e reescrever, e o que lemos é um “documento desregular” que desestabiliza o caráter de verdade dos documentos oficiais.
Em construção minuciosa, “Depois do trovão” revela que muitas insubmissões se materializam na fala.

Verunschk mergulha na dimensão linguística da cultura sertaneja e escreve um português tupinizado, ocupado por palavras “bárbaras”. Estranhar a língua significa abrir mão de um certo português castiço, “bem arrumado”, para evidenciar confrontos: para quem narra, a disputa não ocorre apenas no território físico, mas nos modos de tomar posse da linguagem. Afinal, nunca é demais indagar em que idioma se sonha, ou de que forma se pronuncia o nome dos parentes, animais e plantas. Dizer beija-flor ou guanumbi?


Para saborear a cadência dessa prosa, vale entrar no clima do texto com vocábulos em português arcaico e tupi, além de corruptelas, aglutinações, interjeições e onomatopéias. Nesse rico conjunto, a expressão “anhê!” surge como refrão, espécie de nonada verunschkiano a pontuar os tantos relatos de ferocidade (em tupi o verbo ñe'eng significa falar).


As histórias do presente visitam o passado para escutar personagens como esse enigmático protagonista, reinventando formas de figurar relações de opressão. “Depois do trovão” é livro para ser lido em voz alta. Verunschk trabalha com paisagens sonoras, em um plano auditivo ocupado por rugidos de onça, sonoridades tapuias, gritos de terror e rumores do mato. Auati rememora e fabula sob efeito do rapé, substância que encoraja e faz ouvir “outra música na batida do coração” – nessa toada, talvez seja possível acessar a lição oferecida por um pajé, para finalmente descobrir quem são os inimigos nessa terra feroz, sacudida pela pancada do trovão.


STEFANIA CHIARELLI é professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF). Publicou, entre outros títulos, “Partilhar a língua – leituras do contemporâneo” e “Epigramas críticos”. 

Trecho


“Anhê!
Mas eu, olhando agora desse trecho em que me encontro, vendo de longe a minha vida e tendo notícias de que ela, a Grande Guerra, não há de esmorecer mesmo é nunca, tenho p’ra mim que o inimigo pode até ter nome diverso do nosso, e cor que seja próxima ou dissemelhante, mas que se olharmos bem apurado dentro do seu olho, do seu olho vivo ou do seu olho morto, espelho claro ou pedra turva, rebuçado apodrecido que seja, é a nossa cara mesmo que se acusa de ver.” 

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“Hei de dizer que dantes de toda guerra grande há, por seu espelho, a guerra miúda”
Micheliny Verunschk, em “Depois do trovão”

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