ORIENTE MÉDIO

A história recente do Iraque pelo olhar da literatura

Chega ao Brasil o livro 'Ave Maria', do poeta e tradutor iraquiano Sinan Antoon, professor da Universidade de Nova York

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Quem deseja conhecer mais sobre o Oriente Médio tem uma ótima opção nas livrarias do Brasil: “Ave Maria” (Tabla), do poeta, tradutor e professor da Universidade de Nova York, Sinan Antoon. A história, finalista do International Prize for Arabic Fiction em 2013, se passa em um único dia e tem como protagonistas o já idoso tio Yussef e sua sobrinha Maha. O livro é marcado pelas visões conflitantes da dupla, pertencente a uma família cristã caldeia, a respeito do impacto das guerras e perseguições contra minorias no Iraque.

O autor, Sinan Antoon, acaba de receber o Anan Ameri Lifetime Achievement Award Sinan Antoon. O prêmio homenageia pessoas ou grupos provocam impacto duradouro na literatura e nas artes árabe-americana.

A primeira parte de “Ave Maria” começa com uma discussão entre Yussef e Maha, que acusa o tio de “viver no passado” e de ter se tornado refém de uma época em que a nação prosperava e as diferenças religiosas não eram tão evidentes.O idoso conta sua história com o auxílio fotografias antigas, quando relata um tempo em que “as divergências entre ser católico siríaco ou caldeu, muçulmano sunita ou xiita, judeu, árabe, curdo, armênio ou persa não decorriam de ódios religiosos, mas da política do poder e dos jogos de interesses”. 

Yussef é construído por Sinan Antoon como as raízes de uma tamareira, palmeira que é o símbolo do presente e do vínculo com o passado. Em contrapartida, Maha vê um Iraque fanático e intolerante, “dominado por uma religião difundida pelo fio da espada”. Na segunda parte da história, a personagem feminina demonstra que é profundamente marcada pelo ressentimento provocado por uma grande perda. Para ela, se no Iraque não há lugar para os cristãos no presente, também não haverá no futuro. Apesar das diferenças, os dois buscam uma chance para o perdão mútuo.

O romancista Sinan Antoon nasceu e cresceu em Bagdá, onde estudou Literatura Inglesa. Em 1991, buscou refúgio nos Estados Unidos por causa da Guerra do Golfo. Só voltou para sua terra natal 12 anos depois, após a queda de Saddam Hussein. Nessa época, Sinan estava cansado de ver seu país ser retratado para o mundo apenas como um local repleto de mortes, violência e destruição. Arregaçou as mangas e produziu o documentário “Sobre Bagdá”, que dá voz e vez aos iraquianos. Também publicou duas coletâneas de poemas e cinco romances.



“Ave Maria”

De Sinan Antoon

Tradução de Jemima Alves

Editora Tabla

160 páginas

R$ 61,00

Entrevista/ Sinan Antoon (autor de “Ave Maria”)

“A literatura pode desempenhar o papel de memória narrativa”

Os eventos relatados no romance fazem referência a um ataque terrorista ocorrido na igreja Saiydat Al-Najat, em Bagdá, no ano de 2010, quando dezenas de pessoas foram mortas. Por que você escolheu esse episódio e em que se inspirou para elaborar os personagens do livro?


A reação de alguns cristãos iraquianos, incluindo membros da minha própria família, foi chocante para mim, porque eles foram influenciados pelos eventos recentes e internalizaram um discurso sectário. Percebi que havia uma amnésia coletiva, apagando e esquecendo uma história mais complexa e sutil. Lembrei-me de um passado em que ser um cristão iraquiano não era uma contradição. Vivi no Iraque nos anos 1970 e 1980, quando classe e poder eram os principais fatores, não religião ou seita.

Os dois personagens do romance representam duas gerações, mas também duas visões e memórias da história e do que significa ser um cristão iraquiano. A relação dialética entre eles mostra como a guerra e a destruição reformulam e desfiguram identidades.

Houve cristãos no Iraque desde os primórdios do Cristianismo. Sempre houve tensões, claro, mas eles nunca foram forçados a deixar o país ou tiveram suas igrejas atacadas até algumas décadas atrás. Esse fato é importante para entender que as razões dos conflitos não estão nos textos religiosos e não são trans-históricas ou eternas. Elas estão baseadas na política e no poder.

Os personagens são baseados em pessoas que conheci, especialmente Youssef. É também uma homenagem a membros da minha família extensa.

Paralelamente aos dramas vividos pelos protagonistas, o leitor pode acompanhar parte da história do Iraque, com trechos sobre a queda da monarquia e sobre o período de Saddam Hussein no poder, por exemplo. O que esse livro nos ensina sobre a cultura iraquiana? Por quê?

Este é um romance que conta uma história, mas a história está em toda parte, e a história também é uma narrativa. Personagens, eventos e enredo. A forma como se escreve e lê a história define como se vê o mundo e como se reage aos seus acontecimentos. 

A literatura desempenha um papel muito importante em todas as sociedades como uma memória alternativa ou uma contranarrativa histórica, especialmente em tempos de guerra e fascismo.

A história do Iraque não começou em 2003, nem quando Saddam assumiu o poder. Também não começou com a ocupação britânica, como alguns pensam e escrevem. A chegada dos colonizadores não é o início da história.

Há muita história no romance porque Maha e Youssef a leem de maneiras diferentes – e isso não é por causa da religião, mas da ideologia. O romance não pretende ensinar sobre cultura. Ele é uma janela para uma sociedade com uma cultura rica, tanto religiosa quanto secular.

O livro também dá destaque às diferentes religiões presentes no Iraque e em todo o Oriente Médio. Como essas crenças estão enraizadas no país e qual a contribuição delas para a formação da cultura iraquiana? 

A cultura iraquiana é muito rica, e o país abrigou, além das três religiões monoteístas, outras religiões e uma variedade de seitas. Isso pode surpreender algumas pessoas, pois, no Ocidente, nossa parte do mundo é frequentemente retratada como monolítica.

No século XX, após a independência do colonialismo britânico, havia uma cultura secular vibrante no Iraque. As pessoas se orgulhavam de suas raízes religiosas e étnicas, mas havia uma identidade iraquiana que incluía a todos. O fundador do Partido Comunista Iraquiano era cristão, por exemplo. Os líderes do partido eram judeus e muçulmanos. Todos contribuíram, porque havia um senso de pertencimento.

Mudanças políticas globais e regionais alteraram esse cenário, não apenas no Iraque, mas em outros lugares. Nos anos 1980, houve uma politização das identidades religiosas. No Iraque, a guerra dos EUA em 1991, a destruição da infraestrutura do país e as sanções (1990-2003) destruíram o tecido social e fragmentaram a sociedade – e tudo isso sob uma ditadura brutal.

Quais seriam as opiniões de Youssef e Maha sobre os conflitos atuais no Oriente Médio? Você acredita que a tolerância ainda pode vencer o fanatismo? Por quê?


Tenho um problema com o termo "conflito". Existem guerras específicas sendo travadas por países específicos. Então, vamos nomeá-las. Acadêmicos israelenses especializados em genocídio estão chamando a situação pelo que ela realmente é: "um genocídio".

Maha ficaria de coração partido ao ver tantas crianças sendo mortas todos os dias enquanto o mundo apenas observa, e tantas outras ficando órfãs. Ela ficaria chocada com o fato de que o Ocidente "civilizado", que sempre afirma defender os cristãos, não disse uma palavra quando uma das igrejas mais antigas do mundo, em Gaza, foi bombardeada por Israel. Mas Maha encontraria consolo no fato de que o Papa condenou a violência contra os palestinos e que ele liga todas as noites para os cristãos palestinos em Gaza para conversar com eles! Maha continuará rezando, porque a fé é seu refúgio.

Youssef não analisaria a situação pelo prisma da religião, porque sabe que, embora a linguagem religiosa seja usada, a guerra é sobre poder, terra e lucro. Ele é velho o suficiente para lembrar como os palestinos foram transformados em refugiados em 1948 e depois em 1967 – e, naquela época, os combatentes eram marxistas seculares, mas foram chamados de terroristas! Ele diria que os EUA destruíram a região, começando pelo Iraque em 2003, e talvez não estivesse muito esperançoso, especialmente com a ascensão do fascismo em toda parte.

Não acho que "tolerância" seja um termo muito produtivo. Eu acredito em justiça social e econômica e em igualdade de direitos. A raiz filosófica da tolerância é negativa. Na Europa, por exemplo, ela foi estendida apenas a outros cristãos, excluindo judeus e outras minorias. Moro nos EUA, onde você pode ser demitido do seu trabalho ou preso por protestar contra um genocídio! O segundo maior partido da Alemanha é neonazista. Elon Musk fez uma saudação nazista há alguns meses. Isso é o que deveríamos estar preocupados!

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