VIRGINIA WOOLF

Um livro sobre a sagui que conviveu com Virginia Woolf

Norte-americana Sigrid Nunez, do best seller 'O amigo', conta como escreveu um romance sobre a macaquinha que viveu na casa da autora de 'As ondas' e 'Orlando'

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“Entre eles existia o mais fundo abismo que pode separar um ser de outro. Ele falava. Ele era mudo. Ela era uma mulher, ele um cão. Assim, intimamente unidos e imensamente afastados, eles se encararam. E então, num salto, Flush subiu no sofá e se aninhou no lugar em que ficaria para sempre – sobre a manta aos pés da srta. Barrett.”

O trecho acima, traduzido por Jorio Dauster para a edição da Penguin, é de “Flush”, da inglesa Virginia Woolf (1882-1941). Biografia do cocker spaniel da poeta Elizabeth Browning, “Flush” está no topo da lista dos livros sobre animais da escritora Sigrid Nunez. Nascida em Nova York em 1951, Nunez ficou conhecida mundialmente ao narrar, no sétimo romance, a história de uma mulher que tem de cuidar do dogue alemão de um amigo que tirou a própria vida. Lançado em 2018, “O amigo” venceu o prêmio literário National Book Award, foi traduzido em mais de 30 idiomas e chegou aos cinemas em filme estrelado por Bill Murray e Naomi Watts.

Bem antes do sucesso de “O amigo” (publicado no Brasil pela Instante) e de ter outro romance (“O que você está enfrentando”) adaptado por Pedro Almodóvar em “O quarto ao lado”, a escritora decidiu seguir a trilha de Woolf e escrever a biografia de um animal. Mas não de qualquer bicho: a macaquinha de origem brasileira, adotada pelo casal Virginia e Leonard Woolf nos anos 1930, é a protagonista de “Mitz – A sagui que não teve medo de Virginia Woolf” (Instante). “Naquela época eu tinha uma sagui chamada Mitz que me acompanhava em quase todos os lugares, sentada no meu ombro ou dentro do meu colete”, narra Leonard, mais conhecido pelo trabalho como editor, em um dos volumes da autobiografia “Downhill all the way”.

“Embora grande parte desta biografia não autorizada de Mitz tenha sido imaginada, por falta de detalhes biográficos, ela é baseada em fatos publicados”, informa Sigrid Nunez nos agradecimentos do livro, citando diários e cartas da autora de “As ondas” como uma das fontes para o exercício de pesquisa e imaginação. Concebido inicialmente como um produto voltado para o público infantil, “Mitz” foi retrabalhado e destinado a “crianças de todas as idades” ao ser lançado em 1998. “Como era pequena! Um mero pedaço de macaco. Era possível equilibrá-la na palma da mão, como uma maçã peluda. A cabeça não era maior do que uma noz, os olhos pareciam duas sementes pretas, e ela ostentava as menores narinas – meros furinhos de alfinete”, descreve Nunez no capítulo inicial de “Mitz”, na tradução de Carla Fortino para a edição brasileira.

Apegada a Leonard, a pequena primata não gostava de ver o seu tutor com a esposa e demonstrava contrariedade com guinchos e movimentos bruscos. O sentimento, felizmente, não era recíproco, mesmo com as cenas inusitadas que passaram a ocorrer no lar dos Woolf. “Naquela noite Virginia descobriu como é desconcertante jantar diante de um marido que tem a cabeça de um macaco crescendo em seu peito”, narra Nunez. “Virginia Woolf gostava de Mitz. Ela a achava fascinante e divertida de observar. A maioria de suas referências a Mitz são afetuosas e bem-humoradas”, conta a autora, em entrevista ao Pensar.
Com humor e leveza, Sigrid Nunez recria o convívio da sagui com os Woolf na Inglaterra na iminência da eclosão da Segunda Guerra Mundial – e um episódio tenso com os nazistas, ocorrido pouco antes do início do conflito, tem Mitz como protagonista. É por meio do animal que conhecemos a intimidade de Virginia e Leonard, a intensa atividade literária do casal, a relação com a família e com os amigos e, sutilmente, algumas das questões que perturbavam a mente da escritora. “Virginia sabia que nunca viveria o suficiente para escrever todos os livros que trazia nela”, narra Sigrid, que não chega a citar o suicídio da autora de “Orlando”, em 1941, e encerra a história de Mitz em um dia de Natal do “último ano de paz”. Confira, ao lado, a entrevista de Sigrid Nunez ao Estado de Minas.

"Virginia sempre teve curiosidade em saber como o mundo aparecia através dos olhos de um animal, como era ser um animal e o que os animais pensam dos seres humanos."
'Virginia sempre teve curiosidade em saber como o mundo aparecia através dos olhos de um animal, como era ser um animal e o que os animais pensam dos seres humanos' Arquivo

Como surgiu a ideia de escrever um livro sobre Mitz?
Um dia, não muito depois de publicar meu primeiro romance, recebi uma carta de um editor de livros infantis perguntando se eu tinha algum interesse em escrever para crianças. Acontece que eu sabia que Virginia Woolf e seu marido, Leonard, já tiveram um sagui de estimação chamado Mitz. Ela é mencionada várias vezes nas cartas e diários de Virginia Woolf e, em sua autobiografia, Leonard, que era o principal zelador de Mitz, dedica várias páginas a ela, junto com algumas fotografias. Achei que os jovens gostariam de ler sobre Mitz e os dois cocker spaniels que também faziam parte da família dos Woolfs naquela época. Escrevi três capítulos curtos e os enviei ao editor, que respondeu seis meses depois com uma nota indignada, rejeitando minha ideia de imediato: “Você não pode ter um livro infantil que não tenha filhos!” Bem, pensei, tanto por isso. Então, na época em que terminei de escrever meu segundo romance, meu editor soube por meu agente que eu havia escrito alguns capítulos de um livro infantil e me pediu para enviá-los a ele. Depois de lê-los, ele me disse que eu deveria terminar o livro e que ele queria publicá-lo. No entanto, ele não queria que o livro fosse para crianças, mas sim, como ele disse, “para crianças de todas as idades”. No início, isso me pareceu pouco promissor. Mas então me lembrei do quanto gostei do delicioso romance de Virginia Woolf, “Flush”, uma biografia simulada do cocker spaniel da poetisa inglesa Elizabeth Barrett Browning. Inspirado neste livro, revisei meus três capítulos e escrevi o restante de “Mitz”.

Como Mitz é descrito nos diários e cartas de Virginia? E como Mitz aparece na autobiografia de Leonard?
Mitz viveu com os Woolfs entre 1934 e 1938. Quando ela aparece pela primeira vez, é descrita como patética e doente, mas Leonard rapidamente cuida dela para que ela tenha boa saúde. Mitz e Leonard tornaram-se inseparáveis, e Virginia sempre insistiu que Mitz estava apaixonado por Leonard. Ela era uma criaturinha muito curiosa, mal-humorada e travessa. Ela é descrita como nervosa e facilmente chateada. Ela também tinha um temperamento e, quando descontente, ficava furiosa, tagarelando e gritando. Estranhos muitas vezes achavam Mitz adorável, mas entre os familiares, amigos e convidados da casa dos Woolfs, havia muitos que a achavam repulsiva.

Você narra que, ao visitar o Zoológico de Londres, Leonard descobre que Mitz veio de algum lugar da costa do Brasil. Essa jornada é reconstruída no final do livro. Como foi sua pesquisa para narrar a trajetória de Mitz até Londres?
Foi fácil para mim pesquisar como macacos e outros animais da selva eram presos por caçadores, usando grandes redes, e depois trazidos de navio para outros continentes. Quanto ao resto, usei minha imaginação para inventar como deve ter sido uma jornada tão assustadora para Mitz e os outros animais capturados e traficados com ela.

Você descreve que Mitz tinha ciúmes de Leonard, inclusive em relação a Virginia. Pelo que Virginia descreve nos escritos que ela deixou, como era seu relacionamento com Mitz? O ciúme foi recíproco?
Peguei as informações sobre o ciúme de Mitz de Virginia da autobiografia de Leonard. Leonard era o principal cuidador de Mitz, e ele e Mitz eram muito mais próximos do que Mitz e Virginia. Mas Virginia, que gostava de animais em geral, gostava de Mitz e a achava fascinante e divertida de observar. A maioria de suas referências a Mitz são afetuosas e bem-humoradas. Não há evidências, no entanto, de que Virginia tenha tido ciúmes de Mitz.

Como a observação de animais de Virginia se refletiu em seus livros?
Virginia Woolf era bem conhecida por sua afeição pelos animais e por seu interesse pelo comportamento animal. Ela gostava particularmente de cães. Ela e o marido tiveram vários cães como animais de estimação ao longo dos anos, e há muitas referências a cães em todo o seu trabalho. Ela sempre teve curiosidade em saber como o mundo aparecia através dos olhos de um animal, como era ser um animal e o que os animais pensam dos seres humanos. E, claro, ela escreveu um livro inteiro sobre um cachorro em particular, “Flush”.

Podemos também ler “Mitz” como uma biografia de um período importante da vida de Leopold e Virginia Woolf?
Muito do prazer de escrever “Mitz” foi a oportunidade que me deu de escrever sobre os Woolf e seus círculos sociais e literários, e sobre o trabalho que eles fizeram, como escritores, editores e proeminentes intelectuais britânicos. Os anos em que compartilharam sua casa com Mitz foram alguns dos mais sombrios e dramáticos de suas vidas: os anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial. Assim, o livro inclui muito sobre a ascensão do fascismo na Europa e sobre os preparativos para a guerra.

A amizade entre humanos e animais também é o tema de “O amigo”, escrito após “Mitz”. O que você levou de um livro para outro?
Os dois livros foram escritos com 20 anos de diferença, e não penso neles como conectados. Mas quando eu estava escrevendo “Mitz”, descobri o quanto gostava de escrever sobre um animal e sobre amizade animal e humana. Enquanto escrevia “O amigo”, ocorreu-me que eu poderia incluir um cachorro na história. Não comecei pensando que o romance teria um animal como personagem principal. A ideia me ocorreu quando eu tinha cerca de 30 páginas na narrativa. E estou muito feliz que isso tenha acontecido.

A história de Mitz também pode ser um filme?
Sim, acredito que a história de Mitz daria um filme muito bom e divertido, seja um filme live-action ou uma animação.

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Quais são os animais mais inesquecíveis nos livros, na sua opinião como professora e nas suas memórias como leitora?
Existem tantos, mas entre os que li quando era jovem, meus favoritos eram “Lassie volte para casa”, de Eric Knight, “Thomasina”, de Paul Gallico, os livros “O corcel negro”, de Walter Farley, e “Black Beauty”, de Anna Sewall. No topo da minha lista de livros para leitores adultos, está, é claro, “Flush”, de Virginia Woolf. Deixe-me acrescentar o livro de memórias “My Dog Tulip” de JR Ackerley. Também sou grande admiradora de um romance do escritor húngaro Tibor Déry, chamado “Niki: The Story of a Dog”. E recentemente li um livro de memórias maravilhoso chamado “Raising Hare”, de Chloe Dalton.

Reprodução

“Mitz – A sagui que não teve medo de Virginia Woolf”

• De Sigrid Nunez
• Tradução de Carla Fortino
• Editora Instante
• 112 páginas
• R$ 69,90

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