DEBATE

'Eu escreve': coletânea debate autoficção e escritas de si na literatura

Organizado por Gabriela Aguerre e Natalia Timerman, livro da Record reúne 23 autores e reflete sobre autobiografia, escrevivência e identidade

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Foi a partir de uma perplexidade que as escritoras e pesquisadoras Gabriela Aguerre e Natalia Timerman conceberam a coletânea “Eu escreve: Dilemas das escritas de si”, que chega às prateleiras com lançamento pela Record. A ideia de organizar o volume surgiu de uma conversa sobre a instabilidade de expressões como “autoficção”, “escrevivência”, “autobiografia” e “diário”. “Alguns termos têm aparecido muito na mídia, nas redes sociais, nas discussões, despertando defesas ou ataques fervorosos, mas nos parece que, a cada vez, eles designam uma coisa diferente. Então surgiu o ímpeto de dar um passo atrás e pensarmos no significado desses termos – da autoficção, da escrevivência, da autobiografia, do diário, enfim, das escritas de si em geral”, afirmam, em depoimento ao Estado de Minas

Essa inquietação de pensar o lugar do “eu” na literatura é o fio condutor do livro. O volume reúne 23 autores brasileiros e priorizou nomes que vêm refletindo sobre essas escritas em diferentes contextos, desde a academia até suas próprias obras literárias. O resultado, segundo as organizadoras, surpreendeu em muitos sentidos. 

Longe de propor definições, o livro oferece o que as responsáveis chamam de “a direção do vento”: uma forma de compreender por que as escritas de si estão “em toda parte” e, ao mesmo tempo, sob forte reação crítica. “É curiosa uma certa demanda da crítica por textos ficcionais não autobiográficos, como se isso existisse, como se algo assim fosse definível. Como se a crítica determinasse o que deve ser escrito, impusesse suas demandas, e não fizesse o movimento contrário de analisar o que está sendo produzido literariamente pelo seu tempo”, pontuam.

O volume se organiza em três partes. A primeira, Eu e nós: gêneros instáveis, explora paradoxos e fusões entre autobiografia, diário e literatura coletiva, com reflexões que vão da escrita indígena ao impacto das redes sociais. A segunda, Eu disputa: conceitos em debate, tensiona os limites entre fato e ficção, autenticidade e construção narrativa, revisitando a autoficção e seus impasses. Já a terceira, Eu escrevo: a própria voz, reúne testemunhos que tratam da ética do narrar a vida, da autoteoria, da maternidade e da experiência das oficinas literárias.

Entre os ensaios, surgem provocações como as de Ieda Magri, que pergunta “Narrar a própria vida incomoda muita gente?”, ou de Julián Fuks, que discute o direito à própria história e os limites éticos da exposição. Há também análises sobre o “eu-nós” da literatura indígena, a escrevivência de mulheres negras, o caso Emmanuel Carrère e a escrita como vingança em Annie Ernaux e Édouard Louis.

“A saída da ficção (expressão de Luciene Azevedo, uma das autoras da coletânea) é muitas vezes interpretada como uma saída da própria literatura, o que não nos parece preciso. Se é a forma que determina o literário, e se numa determinada obra há um trabalho formal, que diferença faz se o conteúdo é autobiográfico ou não? Inquietações como essa nos moveram a escolher autores, críticos, pesquisadores para pensarem conosco. ‘Eu escreve’ é esse encontro", concluem as organizadoras. 

TRECHOS

“Vibramos ainda mais quando tivemos certeza do nome que daríamos a este conjunto de textos – e aproveitamos aqui para saudar a equipe editorial da Editora Record, que abraçou não apenas o título (cuja irreverência, pensamos, também revela um choque) como o projeto da coletânea como um todo, desde o início. Eu escreve é a síntese a que chegamos: a apreciação, na maior quantidade de ângulos possível, desse “eu” que se põe a escrever em primeira pessoa. A observação não apenas do “eu” em sua autorreferencialidade, mas como fenômeno contemporâneo, instável e inapreensível, o eu como um outro”

Gabriela Aguerre e Natalia Timerman

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““Meus livros são trinta e dois por cento autobiográficos”, escreve Alejandro Zambra em um ensaio. A frase, uma resposta à pergunta de um crítico – “Quanto de ficção e quanto de realidade há em seus livros?” –, é “totalmente honesta”, garante o narrador. É claro que o absurdo dessa afirmação sempre arranca um sorriso, e é com essa ironia que o autor chileno brinca. No fundo, sabemos que a resposta é que não importa. Muitas de suas obras são lidas em chave autoficcional, e parte do jogo literário conduzido pelo autor consiste em tensionar essa leitura. Isso aparece, por exemplo, nos espelhamentos de seu romance Formas de voltar para casa, em que um escritor-personagem-narrador escreve um romance ficcional sobre sua própria vida, que tem, por sua vez, grandes coincidências com a do próprio Zambra. 

Mas essa brincadeira sobre livros “32% autobiográficos” também guarda um comentário-chave sobre o procedimento de mescla do real e do ficcional: a forma com que o limite entre verdade e invenção se desfaz, deixando o leitor sempre em território ambíguo, diante de uma realidade performada e apresentada como performance. “A questão da identidade, do sujeito e da relação entre consciência e palavra encontra-se, assim, dramatizada e ocupa, junto com a trama do narrado, o primeiro plano dos textos”, movimento que artistas como Pedro Lemebel radicalizam ao transitarem em um vaivém incessante entre versões duplicadas de sua própria figura, nômade e fragmentada – “É necessário produzir a velha Lemebel”, escreve.”

Isabel Cordeiro Lopes 

Capítulo “Literatura latino-americana: testemunho, pós-autonomia e dias atuais

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“Embora a exploração do biográfico junto à ficção não seja novidade, é inegável que, a partir dos anos 2000, o número de obras que exploram a investigação de si, seja através do resgate da dicção memorialística seja através das formas autobiográficas (como diários, por exemplo), é enorme. Há também quem defenda que essa produção ilimitada é uma espécie de retorno do recalcado, já que a rejeição à exploração da primeira pessoa nos textos – principalmente quando aproximada ao nome do autor, na capa do livro – durante a modernidade foi um interdito calcado na superioridade da ficção sobre os gêneros autobiográficos, como afirma a escritora e teórica Marie Darrieussec.”

Luciene Azevedo

Capítulo “As redes sociais, as escritas de si e a ficção”

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“Annie Ernaux define sua escrita como “algo entre literatura, sociologia e história”. No caso da primeira pessoa, ela diz, se trata de um “eu transpessoal”.9 Essa vertente da autoficção concentra-se na transmissão da história familiar entre gerações, muitas vezes conectando experiências individuais a contextos históricos mais amplos. O passado familiar se torna um elemento essencial para a compreensão não somente da identidade do autor, mas também de alguns aspectos mais amplos, que dizem respeito a questões geracionais, muitas vezes relacionadas à imigração. O romance de estreia de Tatiana Salem Levy, A chave de casa, por exemplo, relata ao mesmo tempo o luto vivido após a morte da mãe, a busca pelas raízes familiares de seus avós sefarditas imigrantes da Turquia e o próprio nascimento da autora em Lisboa, enquanto seus pais se encontravam no exílio na época da ditadura militar no Brasil. O fato de a mãe da autora ter sido uma conhecida jornalista que, como judia, se ocupou de promover a causa palestina e o antissionismo acrescenta uma camada importante de sentido na leitura do romance.”

Diana Klinger 

Capítulo “A autoficção: um fenômeno contemporâneo”

Gosto de pensar a autoficção como um entre muitos fenômenos contemporâneos, um dos mais ruidosos, sem dúvida, mas parte menor de algo mais vasto. Proponho a substituição do termo autoficção por outro nome, ou mais precisamente um acréscimo: concebê-la como subgrupo de algo que talvez se possa chamar de pós-ficção. Refiro-me a uma era em que produzimos ficções mesmo sabendo que algo do mecanismo ficcional se rompeu, que para muitos daqueles que se querem autores e autoras a fabulação se fez impossível. Nathalie Sarraute soube descrevê- -lo como ninguém, e lá se vão sete décadas desde a sua afirmação de que estaríamos vivendo uma “era da suspeita”. Um estremecimento entre autor e leitor que produz uma desconfiança recíproca, e funda entre eles um pacto mais frágil, mais instável, sempre contingente. O caso é que as condições para uma narrativa passaram por profundas convulsões no último século, ou século e meio, gravando sobre sua forma habitual algumas marcas conspícuas. Em outras palavras, as crises sucessivas do romance deixaram no gênero cicatrizes severas que o deformam, que o alteram numa infinidade de aspectos. Criou-se uma descrença em relação ao romance convencional – se é que algo digno de tal nome alguma vez existiu, hipótese bastante refutável. Contra essa descrença, e com algum desespero, o romance tem se aferrado a uma crença poderosa no real.

Júlian Fuks 

Capítulo “O direito à própria história e a ética do contar”

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Muitos comentários acerca da autoficção passam, de algum jeito, por uma descrição mais ou menos próxima desta: um narrador em primeira pessoa que na atualidade teria se tornado declaradamente sincero, contido, coadjuvante, intencionalmente mais frágil, humilde, consciente de seus limites e de todos os abusos e sofrimentos associados a tantos textos em nome de um presumido direito ilimitado de inventar. E não há nada de condenável nessa caracterização, exceto o fato de que ela muitas vezes desvia a conversa da percepção de que essas demarcações entre fato e ficção foram, desde a metade dos anos 1990, transfiguradas de formas novas com o surgimento da internet e com o aproveitamento oportunista e cínico de todo o seu potencial de difusão de “informação”, instaurando uma espécie de caos hermenêutico do ponto de vista da recepção, da leitura, em escala antes inimaginável. Ficou de repente muito difícil e ao mesmo tempo muito fácil “ler”: as convicções se tornaram ainda mais convictas, as verdades e julgamentos ainda mais verdadeiros e definitivos, e, em um ambiente assim acelerado e rígido, aquilo que (supostamente) entendíamos por ficcional tende a implodir.

Adriano Schwartz

Capítulo ”Autoficção, uma crítica e um incômodo”

EU ESCREVE: DILEMAS DAS ESCRITAS DE SI 

Por Gabriela Aguerre e Natalia Timerman (organização)

Editora Record

306 páginas

R$ 78,99

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