Dois poemas de Boris P.
“telepatia”
— e quando uma pele nova brotar
ao redor do focinho e um tufo de pelos
anunciar a troca de estação
você poderá me escrever longos poemas, Marina
vou carregá-los numa sacola na altura
do ombro esquerdo
com a mesma obstinação com que Kliébnikov
carregava seus cálculos matemáticos
nas trincheiras
seus poemas vão perfurar meu anoraque
e pelas ruas vão dizer
lá vai o doido do Pasternak
“acampado na varanda”
I
desconcertada e discretamente feliz
— assim eu te imagino, Marina
pelas ruas de Saint-Gilles.
Você que um dia me disse:
Eu não adoro o mar. Não consigo.
Tanto espaço e não se pode caminhar.
Na contramão das suas palavras
é sempre numa cidade à beira-mar
que te adivinho. Hoje, por exemplo:
debaixo de um céu sem brisa
você caminha pela rua da praia
empurrando uma bicicleta enferrujada —
rodas bambas no chão de pedra
enquanto sonha o próximo poema.
II
apesar da primavera,
o dia amanheceu feio e encoberto.
Para me vingar, recito Arquíloco:
Ninguém sabe a cor dos dias que Zeus traz.
Lembro que uma vez você escreveu:
O mar se parece demais com o amor.
Eu não amo o amor. (Esperar e esperar
isso é tudo que ele provoca em mim.)
Amo a amizade, a montanha.
*
“Aqui em Moscou”
não há mares nem montanhas.
Só me resta sair de casa
varar os subúrbios, mirar morros
invisíveis e lá de cima me atirar
nos grandes blocos de gelo
que passam na correnteza —
vai que um pedacinho de iceberg
me leva até a Europa
e te alcança onde você estiver:
aflita na fila do mercado
ou debruçada na varanda sobre um livro
chorando arrependida
das labutas da maternidade.
Seja como for
agarre essa pedra de gelo
e ouça o que ela diz —
em algum momento, Marina
você vai ter fome. Se a cozinha
estiver deserta, se não encontrar
nem um cogumelo na despensa
vá até o boteco da esquina —
cante, dance, implore.
Você merece refeições fartas.
Não seja mesquinha.
*
Dois poemas de Marina T.
“as sílabas e os nomes”
Marina recorda
As sílabas — belas maçãs vermelhas —
mordo feito criança feroz.
E viva a marca dos dentes na pele.
O sabor mora na língua, mora
nos lábios, mora na maçã mordida
que esplende na minha mão.
Quando criança me chamavam Mússia.
Porém tão logo saíam da boca
as sílabas despencavam no chão.
Eu não chorava. Já eram minhas
a boneca de porcelana e a estátua
de Púchkin na avenida Tverskáia.
Por que precisaria de um nome?
Ele vivia trancado no quarto —
pelicano empalhado.
Bastou um verão, Boris
para Marina ganhar asas.
*
“três cartas quase secas”
1
Em poucas palavras:
não imagino a vida a seu lado.
Não suporto a repetição infinita
do pano de chão, da peça
de roupa, da louça na pia
e a tortura contínua das refeições.
Não nasci para o cotidiano.
Nasci para o transe.
Minha casa é uma estação de trem.
É o que digo aos amigos:
não contem demais com o meu amor.
Por isso, Boris, te concedo mais tempo:
para que você decida como prefere morrer.
Última coisa: não quero que te enterrem.
Quero que te queimem.
2
Peço desculpas, Boris
pela secura da última carta
mas tenho meu código de honra.
Não posso dourar palavras
como se douram cebolas.
As duas fazem chorar
mas terminam aí as coincidências.
Na cozinha, minha única destreza
é descascar, pelar, cortar, picar.
Ponho os legumes na panela
e esqueço de apagar o fogo.
No fundo, só posso dar de comer
à minha própria fome e
ela não se sacia com comida.
3
De agora em diante
vou te escrever menos e fumar
um pouco mais. Não sei por quê
mas o papel é uma égua —
fica bêbada com a tinta da caneta
e sorve sem trégua essa mistura
de sangue e noz de galha.
Dá para ouvir os ecos
no longo pescoço equino
de cílios verde-prata e crina
que me faz chorar.
Pescoço, cílios, crina.
São esses os meus companheiros.
Por isso não estranhe, Boris
se um dia você der comigo
debaixo da sua janela
montada numa égua albino.
Ela vara a madrugada, mergulha
o focinho na água dos charcos
e fecha o meu corpo
com um discreto xale de neblina.
SOBRE O LIVRO
Alberto Martins
“Foi Boris Schnaiderman quem me falou pela primeira vez da ‘correspondência amorosa’ entre Marina Tsvetáieva, Boris Pasternak e Rainer Maria Rilke. Mencionou o livro quando já estava de saída, na porta da editora onde trabalho em São Paulo. Na hora fui reticente quanto ao adjetivo “amoroso”, seria isso mesmo? Mas quando o livro me caiu nas mãos, fiquei assombrado. As cartas, que atingem o ápice no verão de 1926, passam rapidamente de conversas em torno da poesia para declarações de amor apaixonadas. Boris está em Moscou, Rilke na Suíça e Marina no exílio, numa cidadezinha na costa da França. Penso que, além da poesia, a impossibilidade de se encontrarem também turbinou a intensidade das paixões. O fato é que foi uma leitura inesperada para mim. Foi como entrar num rio de altíssima voltagem e logo me vi escrevendo através dessas vozes. Quero dizer: não tenho nenhuma pretensão de reproduzir as vozes verdadeiras (ou o que seja isso) de Tsvetáieva, Rilke ou Pasternak. São todas figuras inventadas – e uma nota de abertura deixa isso bem claro –, mas a intensidade do que eles dizem e vivem na sua correspondência abriu uma porta, um canal, para mim. Boris e Marina foi escrito a partir daí.”
SOBRE O AUTOR
Alberto Martins nasceu em Santos (SP) em 1958. É autor dos livros de poemas “Cais” (2002), “Em trânsito” (2010) e Boris e Marina (2025) e das ficções “A história dos ossos” (2005), “Lívia e o cemitério africano” (2013) e “Violeta” (2023). No recém-lançado “Boris e Marina”, ele cria poemas a partir de cartas reais trocadas no verão de 1926 por três grandes poetas do século 20: Boris Pasternak, Marina Tsvetáieva e Rainer Maria Rilke, cada um em um país (Pasternak na Rússia, Tsvetáieva na França e Rilke na Suíça).
“BORIS E MARINA”
De Alberto Martins
Companhia das Letras
152 páginas
R$ 89,90