As muitas vozes sobre Francisco Alvim, o poeta que ensinou a ouvir
Nicolas Behr, Alberto Martins, Alice Sant’Anna e Fernando Fiorese celebram a obra do autor em depoimentos sobre sua poesia singular e coletiva
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“Ele nos ensinou a ouvir”
Nicolas Behr
“Francisco Alvim nos alfabetizou. Nós, os chamados poetas marginais. Fez a ponte entre os modernistas e os poetas da geração mimeógrafo. Tem mais: Francisco Alvim também nos ensinou a ouvir. A poesia está no ar. Quem pegar, pegou. A poesia de Francisco Alvim é o exemplo mais claro do poder da linguagem: transformar uma fala banal, corriqueira, em literatura da mais alta voltagem. Com apenas cinco palavras emplacou este poema entre os 100 melhores do século:
'Argumento
mas se todos fazem.'
Ele é o poeta mais gentil e afável que conheço. Mas quem supera seu texto em crueldade? Talvez Dalton Trevisan. Ou Kafka.”
Nicolas Behr é poeta, autor de livros como “Iogurte com farinha”, “Chá com porrada” e o mais recente, “EnCerrado”
Leia: Francisco Alvim se aproxima dos 90 anos como voz singular da poesia
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“Os poemas se oferecem sem chão, sem solo algum onde pisar”
Alberto Martins
“Às vezes penso que se 1964 não tivesse existido, Chico Alvim seria, por excelência, um poeta da primeira natureza — “no ar do ar/ na luz da luz”, como diz um poema de “Elefante”. Mas o golpe existiu e ainda está por aí, força medonha que consegue ser, ao mesmo tempo, inércia e propulsão, e empurra o país constantemente para trás. Porque 64 existiu, Chico abriu os ouvidos e saiu por ruas, gabinetes e salas de espera registrando em notas sintéticas cenas da trágica dramédia nacional. Fez isso com tal acuidade e precisão que já não sabemos se esses poemas são autorais ou saltaram diretamente da realidade para os nossos ouvidos, sem intermediários. Um que não me sai da memória é o já velho e tão atual “neste açougue/ quero ser carne de segunda”. E no entanto, pesar de tudo, o lírico resiste. Há muitos anos seus livros têm sido a mistura incômoda — incômoda pelo que revela de nosso tempo — de poemas-microfones abertos, como que anônimos, e um lirismo extremamente pessoal, tocante e pungente. Tão mais pungente e tocante porque seus poemas se oferecem a nós sem chão, sem solo algum onde pisar. Não se trata mais do elefante drummondiano que sai às ruas em busca de amigos e amanhã recomeça. O elefante de Chico Alvim é impalpável, praticamente incorpóreo — impelido aos ares por uma nuvem de cinzas e cismas, sua sombra paira sobre as nossas cabeças como uma promessa que jamais poderá se realizar. É preciso uma dose de medo e outra maior de coragem para criar uma obra como essa.”
Alberto Martins é autor de livros como “A história dos ossos” e o mais recente, “Bóris e Marina”
Leia: Os poemas de Francisco Alvim
“Singular e coletivo”
Alice Sant’Anna
“Chico Alvim criou um estilo tão singular e, ao mesmo tempo, tão coletivo, que é difícil perceber onde uma coisa termina e a outra começa. Explico: às vezes, na rua, você ouve uma frase e pensa: “isso poderia ser um poema do Chico Alvim”. Sua obra mostra que a poesia está em toda parte, até nos lugares menos óbvios, e que o poeta precisa ter bons ouvidos. É uma poesia que muitas vezes nasce de fora, mas que ele é capaz de captar, absorver, transformar e devolver com absoluta precisão.
Há muito o que dizer sobre Chico: o humor afiado, que nos provoca o riso sem jamais humilhar; o retrato do Brasil, com seu abismo social; e a concisão, sua marca registrada, a arte de dizer tanto com tão pouco. E há ainda algo que aparece tanto na sua poesia quanto na sua pessoa: uma gentileza radical, uma curiosidade genuína pelo outro e um olhar interessado, generoso e acolhedor.”
Alice Sant’Anna é autora de livros como “Rabo de baleia”, “Pé do ouvido” e o mais recente, “Acrobata”
Leia: Para Francisco Alvim, livro de Maria Lúcia Alvim foi uma revelação
Leia: Francisco Alvim: a paisagem política, pictórica e amorosa do poeta
“Inversão de perspectiva”
Fernando Fiorese
“Eu vi/os filhos do Barão de Porto Novo/louros olhos azuis/descalços na estrada/maltrapilhos/cantando em francês”. O poema “Depois da abolição” desvela os modos e manobras de Francisco Alvim no sentido tanto de operar a elisão do eu lírico da tradição quanto de acolher as vozes plurais e anônimas de personagens no mais das vezes postas à margem da história. Na poética alviniana, à maneira de um teatro de câmara, sobejam monólogos e diálogos de “coronéis” e apaniguados políticos, de pequenos-burgueses e trabalhadores ordinários, de velhos, crianças, mulheres e outras tantas dramatis personae rasuradas ou desconsideradas pela História Oficial. Nestes termos, a poesia de Alvim avizinha-se das teorizações e práticas da Nouvelle Histoire, principalmente no que concerne à história vista de baixo e à história oral. Seja pelo acolhimento das falas e ações de sujeitos históricos pertencentes às classes subalternas, seja por dar a ver os intestinos dos discursos hegemônicos, seja pela revisão crítica dos movimentos coletivos e dos acontecimentos assentados pela historiografia tradicional, Chico Alvim realiza uma cabal inversão de perspectiva em relação aos atores da História do Brasil”.
Fernando Fiorese é poeta, escritor e crítico