'A hora da estrela', a triste sina de Macabéa, vira HQ
A artista visual de BH Line Lemos dá vida à retirante nordestina de Clarice Lispector, adaptada para quadrinhos pela primeira vez
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“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida”. Assim começa “A hora da estrela”, o livro mais popular de Clarice Lispector (1920-1977). E, sim, é possível adaptar a literatura da escritora ucraniana naturalizada brasileira para quadrinhos, apesar de muitos leitores considerarem sua obra hermética e complexa, devido ao seu caráter psicológico introspectivo.
A própria escritora comentou esse conceito em entrevista concedida em 1977, dez meses antes de morrer, ao repórter Júlio Lerner, da TV Cultura. “Você se considera uma escritora popular?”, perguntou o jornalista. Clarice respondeu: “Não”. “Por qual razão?” questionou Júlio. E ela: “Me chamam de hermética. Como é que eu posso ser popular sendo hermética? Eu me compreendo. De modo que não sou hermética para mim.”
Seja como for, os livros de Clarice são inquietantes, com destaque para os dois melhores, “A hora da estrela” e “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”. “A hora da estrela”, último livro e o mais conhecido da escritora e contista, acaba de ganhar uma inédita e fiel adaptação para quadrinhos, com texto da escritora gaúcha Leticia Wierzchowski e ilustrações da artista visual e educadora belo-horizontina Line Lemos.
A adaptação tem apenas duas cores – preto e ocre – causa uma estranheza inicial, foge ao realismo dramático da obra, mas, no desenrolar das páginas, essa impressão é dissipada pelos desvaneios e pelas agruras de Macabéa e não há como não simpatizar com ela.
A tocante e triste história da jovem e simplória retirante nordestina Macabéa – que não sabe nem o que é deputado –, que vive em São Paulo com a ambição de apenas arranjar um namorado, é daquelas que jamais perderão a atualidade, mesmo agora, quase 50 anos após o lançamento do livro. Ela está ali espremida no quarto dividido com outras três mulheres e então conhece o metalúrgico Olímpico.
Simplicidade, delicadeza e a vida dura por um fio. É Clarice desvendando o ser humano. E como desvendar a obra de Clarice, inclusive para HQ? Leticia explica esse processo de transposição. Autora de “A casa das sete mulheres”, que também adaptou para quadrinhos, depois de ver sua obra transformada em minissérie pela Rede Globo, Leticia fala da proeza da adaptação da obra de Clarice.
“Como levar uma história tão impalpável para a página em traços e cores, na narrativa fracionada de um roteiro de HQ? Difícil tarefa a que me propus (…) Confesso que, em alguns momentos, senti medo. Depois, fiz o que sempre faço quando vou começar um livro novo, quando preciso fazer meu o mundo do outro, o mundo do meu personagem: vou me aproximando pelas semelhanças”, diz a escritora na apresentação da obra.
“Todos nós, personagens, leitores ou narradores, temos pontos em comum, pequenas coisas que unem nossas intricadas humanidades. Assim, entrei pela porta que se abria para mim. Fui tão inconsequente quanto a própria Macabéa, e me atirei nessa viagem. Contei a vida da nossa jovem nordestina, a sua quase grande história de amor, a sua existência íntima de moça invisível na cidade grande já repleta de ninguém a lutar por protagonismo”, explica Leticia também.
A escritora gaúcha fala poética e filosoficamente do “estardalhaço do silêncio” que Clarice faz do livro. E de rendição inconsciente. “Macabéa é uma moça que não consegue fugir de sua sina. Em seu ralo mundo, nem sequer reconhece a mesquinhez da vida. Ela tem sonhos, ou lampejos de sonhos; quer, em silêncio, ser alguém, viver coisas... Sonha com pessoas por perto, em ser uma natriz de cinema, sonha em vestir-se de noiva algum dia.”
LINGUAGEM GRÁFICA
Line Lemos contou ao Pensar como foi o seu sentimento para ilustrar uma obra tão delicada e dramática. “Um quadrinho é uma obra em si, não uma simplificação ou imitação do texto literário, até porque é impossível reproduzir Clarice. Sua voz é única. Espero que esse livro seja mais uma reverberação dessa potência”, analisa a artista.
“‘A hora da estrela’ é uma das obras de Clarice que mais se conduz por um enredo, mas continua cheia de experimentação e reflexão sobre a linguagem como é característico dela. A linguagem híbrida do quadrinho traz a chance de dar ainda mais nuances pra essa história”, explica.
“Fizemos uma adaptação com muito respeito pelo espírito da obra, suas questões chaves e sutilezas, mas de forma que não fosse redundante. Trouxemos a linguagem gráfica como mais uma entrada no seu universo, seu humor, sua crítica e delicadeza?”, conta Line.
E como bem definiu Clarice: “Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no mundo me dê. Vós? É uma história em tecnicolor para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso. Amém para nós todos.”
“A HORA DA ESTRELA”
• De Clarice Lispector
• Adaptação para HQ: Leticia Wierzchowski (texto) e Line Lemos (ilustrações)
• Rocco
• 112 páginas
• R$ 69,90