Elaine Martins
Especial para o EM
Amores loucos, amores fluidos, um novo amor. Esses temas, seguidos pelo tema do gozo feminino e suas relações com a escrita, povoaram o trabalho da psicanalista Lucíola Macêdo nos anos da pandemia e atravessam o seu trabalho literário publicado no seu novo livro de poesia. Em “Sem amanhã: cartas fanfics poemas” (7Letras), a autora revisita poetas e escritores de sua biblioteca pessoal relendo-os e reescrevendo-os. São, por exemplo, poetas que, ao longo da vida, se nutriram intensamente de trocas epistolares com outros poetas e que, arrebatados pela escrita e pelo sentimento amoroso, escreviam cartas também arrebatadoras.
O título do livro, “Sem amanhã”, expressa a diluição e a contração dos marcadores temporais diante da intensidade dos acontecimentos do desejo. O subtítulo do livro, “cartas, fanfics e poemas”, sinaliza o tom da conversação poética e do campo expandido da literatura instaurada por Lucíola Macêdo diante de memórias de leituras, de lugares, de cenas, de acontecimentos, de experiências e de experimentações.
O livro compõe-se musicalmente de 12 seções tendo como títulos nomes de personagens: Lilia, Tatiana, Veronika, Lílik - Volóssik, Volódenka - Lítchka, Rainer - Sylvia, Ariel - Calibã, Virginia, Miss Raft - Mr. Dream - Miss Lake. Trata-se, em sua maioria, de figuras femininas com vidas habitadas por encontros e desencontros com amores não incomuns às histórias de muitos de nós, ganhando corpo nos textos do livro que, da ordem do fragmento, são marcados por histórias e correspondências, carregadas de poesia, paixão e impossibilidade do encontro.
As figuras que povoam a vida e a obra de poetas e escritores, como Rilke, Maiakóviski, Virginia Woolf, Silvia Plath, Anne Sexton, entre outros e outras, têm suas histórias recriadas, como se migradas para as telas dos celulares e do computador, onde a troca de imagens e mensagens cada vez mais curtas e objetivas talvez coloque em desuso as cartas e os bilhetes de amor. As cartas de amor, ridículas segundo os versos de Álvaro de Campos, aparecem transpostas para outros gêneros da contemporaneidade e dividem as páginas com outros poemas também marcados pela intensidade das afecções e do tempo.
Para o poeta, tradutor e crítico Carlito Azevedo, que assina o texto da orelha, “Anne Sexton, Clarice Lispector, Lacan, Silvia Plath, Maiakóvski, entre outros e outras, são menos citações do que ‘simultaneidades que se expandem’, em poemas, cartas e fanfics. Por vezes, tal como o desejo (personagem principal do livro), são apenas (apenas?) embaciados na tela do celular ou no espelho, embaciados na superfície da página.” Ainda segundo Azevedo, o livro fala de superfície e superfícies: “Das tocáveis, das intocáveis. Das tocantes. Da grande paixão pela talvez utópica aderência, da palavra na coisa, da pele na pele, do desejo no desejo.” Para tanto, a poeta explora vários registros de linguagem e com humor flerta com o nonsense, abrindo-se para conversações em diferentes cenas e planos de expressão.
Neste terceiro livro de poemas de Lucíola Macêdo - que já havia publicado “Soante” (Scriptum, 2013) e “Balões vítreos” (Quixote +Do, 2022) - o leitor se encontrará, nas palavras de Azevedo, com tudo o que “Sem amanhã” traz de “inovador, alegre, potente, triste, coloquial e raro”.
Sobre a autora
Lucíola Macêdo é psicanalista, escritora e poeta, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Nascida em Fortaleza (CE), reside em Belo Horizonte (MG), onde desenvolve suas atividades profissionais e literárias. Sua produção se destaca pela interseção entre psicanálise de orientação lacaniana, a poesia e a crítica literária, articulando temas como o trauma, o corpo, a linguagem e as políticas da memória, demonstrando como a psicanálise pode oferecer uma perspectiva única sobre o sofrimento humano e também sobre o impacto dos acontecimentos políticos e sociais.
“Sem amanhã: cartas fanfics poemas”
De Lucíola Macêdo
Editora 7Letras
120 páginas
R$ 57
Lançamento neste sábado (1/11), das 11h às 14h, com sessão de autógrafos da autora com performance e leitura de poemas pela atriz Raquel Pedras, na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, BH).
ELAINE MARTINS é professora de Estudos de Linguagens e Processos Editoriais do CEFET-MG, mestre em Teoria da Literatura pela UFMG e doutora em Literatura Comparada pela UFMG / Università degli studi di Roma La Sapienza (Itália).
Trechos do livro
dois corpos podem sim ocupar o mesmo lugar no espaço em alguma fissura onde as leis de Newton caducam. naquela nervura onde a insônia alcança a premência da fricção da carne eviscerada tudo parece ofuscado. a memória não captura aquilo porque ela não foi feita para o infinito. praquele agora
*
existir à pouca luz. ele me deixou morrer. eu me deixei
morrer por ele. ele me quis morta. eu me quis. por favor
não digas nada. não fales. não faças barulho. não saias.
adorada. pregada ao meu pensamento. quero-te. não
respires alto demais. sobretudo não ronques. não grites.
por favor, imploro-te, não chores. sobretudo não xingues.
não despertes o monstro que sou. que és. não deixes que
as garras te escapem. aquelas com as quais arranha-
me o sacro fazendo-me sangrar. sobretudo engoles a
hostilidade. a hóstia. carne exangue. e escondas as chagas
no quimono verde-água que te dei no último aniversário
