J. M. Coetzee investiga o indizível no romance 'O polonês'
O inquietante relacionamento de um pianista célebre com uma mulher bem mais jovem é o ponto de partida para discutir os limites da linguagem
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Kalil de Oliveira
Especial para o EM
Mais recente lançamento no Brasil do escritor sul-africano J.M. Coetzee, “O polonês” (Companhia das Letras) discute os entrelaçamentos de linguagem, identidade e desejo. O romance do Nobel de Literatura de 2003 começa em 2015, quando Beatriz, uma socialite catalã, é designada para recepcionar em Barcelona o pianista Witold Walczykiewicz, célebre intérprete de Frédéric Chopin. Ela é parte do conselho administrativo do Círculo de Concertos que acontece todos os meses no bairro gótico da cidade espanhola.
Ao longo do encontro inicial, o músico oculta qualquer demonstração de interesse, ao contrário, aparenta indiferença. Após o recital, eles, acompanhados de outros membros do círculo, jantam em um restaurante. O artista parece se esforçar para interagir. De volta à Polônia, envia a Beatriz o CD com suas gravações dos “Noturnos” em agradecimento ao tratamento recebido. É o suficiente para inquietar a mulher.
Meses depois, o homem retorna à Catalunha para executar oficinas em um conservatório de Girona. Witold convida Beatriz para que o encontre. Ela vai, mas demonstra incômodo. Lá o músico a convida para acompanhá-lo em sua turnê pelo Brasil, mas ela nega. A mulher é casada e bem mais jovem que ele, que tem 72 anos. Esses seriam motivos suficientes para o fim das investidas do pianista. Mas Beatriz também parece não desejá-lo. Longe disso, o corpo idoso desperta asco.
Porém, a protagonista constitui suas próprias memórias do subsolo, como na novela de Fiódor Dostoiévski em que o narrador discute a satisfação de desejos destrutivos, a busca pelo prazer na dor. Há elementos que despertam algo nela: a aventura em um casamento já sem paixão, ser vista como atraente quando está à beira do climatério e os mistérios da linguagem.
Vendo até onde o músico chegaria, Beatriz alimenta o caso. Há um segundo retorno à Espanha. Witold se apresentará em Maiorca e se oferece para um novo recital no Círculo. Beatriz agradece e diz a ele que a temporada para aquele ano está completa. Mas ela vai a Maiorca, onde a família tem casa de veraneio, e convida-o para passar alguns dias. Mesmo sem atração, é ela quem dá abertura para que o músico apareça em seu quarto de madrugada. “Deixo a porta dos fundos destrancada. Se se sentir sozinho durante a noite e quiser fazer uma visita, fique à vontade”, diz.
Após o período na ilha espanhola, Beatriz põe fim ao que chama de “caso”. Ele segue escrevendo para ela, que apaga os recados sem ler. Em 2019, então, recebe o chamado da filha de Witold dizendo que ele morreu e deixou “coisas”para ela. Mais uma vez, realiza o desejo destrutivo e vai ao subúrbio de Varsóvia buscar sua herança: um manuscrito com 84 poemas dedicados à Beatrice — amor platônico do poeta Dante Alighieri.
A linguagem é o tema do livro. Desde o começo, Witold demonstra inabilidade com as palavras. O músico também é descrito, no que tange à alma, como “perturbadoramente sem brilho”, mas, ao piano, é constituído de espírito. A música aparece como a expressão do indizível, assim como Clarice Lispector escreve em “Água viva”: “Não se compreende a música: ouve-se.” Parte substancial da trama são os conflitos causados pela incompreensão, pelo difícil campo semântico do polonês transposto para o inglês e então para o espanhol. Os próprios poemas deixados por ele, que precisaram ser traduzidos por uma profissional, são qualificados como fracos e, mesmo assim, deixam o sentido no ar. O que quer dizer?
A linguagem é por excelência constituinte da identidade, outro elemento do romance. Witold é despojado de caráter. Aliás, o nome do músico é subtraído pelo Círculo, que o nomeia de O Polonês para contornar a dificuldade da pronúncia polonesa. Witold ser intérprete chopiniano denota a intenção do autor em debater identidades. No ensaio inicial de “A viagem do recado”, José Miguel Wisnik se debruça sobre o repertório de Friedrich Chopin. Chopin, mostra o ensaísta, compôs para o piano como ninguém à sua época, e nas teclas depositou sentimentalismo intenso. Tudo isso marcado pelo relacionamento com a poeta George Sand e os temas nacionalistas de uma Polônia invadida pela Rússia.
Em uma passagem, Beatriz o chama de pianista, contrariando o Polonês. “’Tenho sido um homem que toca piano’, diz por fim. ‘Como o homem que fura os bilhetes no ônibus. Ele é um homem que fura bilhetes, mas não é um bilheteiro.’”O que traz a discussão sobre o trabalho como determinante na identidade do sujeito. Pode ser algo além de pianista um homem que vive de tocar piano? O ser do indivíduo caracterizado por sua função é aprisionador.
A narrativa de Coetzee é direta, com frases e parágrafos curtos que conduzem o ritmo de leitura como uma teia de sonatas românticas de Chopin. Há predomínio do tempo verbal presente, que alimenta a tensão de mais um livro do autor de romances consagrados como “Desonra”.
Trecho do livro
“Ela começa com os noturnos. O que Chopin estava dizendo ao mundo quando sonhou com seus noturnos? Mais importante: o que o Polonês dizia ao mundo no dia em que fez a gravação? Mais importante de tudo: o que o Polonês, no dia em que fez a gravação, estaria revelando de si mesmo a uma mulher de cuja existência no mundo real ele ainda não fazia a menor ideia?”
KALIL DE OLIVEIRA é jornalista, formado pela Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade de Buenos Aires
“O POLONÊS”
De J. M. Coetzee
Tradução de José Rubens Siqueira
Companhia das Letras
144 páginas
R$ 79,90