Muitas mulheres em uma: biografia detalha trajetória e luta de Zuzu Angel
Virginia Starling lança biografia que revela a criadora, a mãe e a militante que enfrentou a ditadura para exigir respostas sobre Stuart Angel
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"Quem é essa mulher. Que canta sempre esse estribilho? Só queria embalar meu filho. Que mora na escuridão do mar”. As quatro primeiras palavras da dilacerante canção “Angélica”, de Chico Buarque e Miltinho, dão nome ao livro da escritora e tradutora Virginia Siqueira Starling, com lançamento neste sábado (22/11), às 11h, na Livraria da Rua, em Belo Horizonte. “Quem é essa mulher? – Uma biografia de Zuzu Angel” (Todavia) mergulha fundo, para emergir em história, emoção e boa leitura, na vida e morte, dores e alegrias, luz e trevas da mineira Zuleika Angel Jones (1921-1976), natural de Curvelo, um dos grandes nomes da moda brasileira com projeção internacional.
Nas 540 páginas do livro, a belo-horizontina Virginia Starling mostra que Zuzu foi “muitas mulheres em uma” – mãe, militante, costureira, designer, empresária, contestadora –, todas elas unidas por determinação, coragem, força, afeto. E, acima de tudo, busca desesperada pelo corpo do filho Stuart Angel Jones (1946-1971), assassinado na Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro (RJ), “após ser arrastado por um jipe com a boca atada ao escapamento do veículo”
Em cada passo, no Brasil dos tempos da ditadura militar e no exterior, diante dos mais poderosos, Zuzu cobrava explicações e gritava seu inconformismo, embora sem respostas sobre o paradeiro do filho. O silêncio veio com sua morte, em abril de 1976, num acidente de trânsito nunca esclarecido, mas agora, quase meio século depois, “ecoa” na obra que leva seu nome – e um ponto de interrogação – a partir de minuciosa pesquisa em fontes primárias, iniciada em fevereiro de 2021 pela autora.
O primeiro contato com Zuzu foi pela moda, conta Virginia, de 30 anos, nascida, portanto, 18 anos após a morte da estilista que usou desenhos de anjos em uma coleção-protesto contra a ditadura militar. Com interesse pelo assunto desde a adolescência, ela descobriu a mineira de Curvelo. Em leituras e pesquisas, “encontrei Zuzu como a primeira designer de moda a realizar um desfile político”. Também leu sobre seus esforços em fundar uma moda brasileira e suas preocupações com a valorização da mão de obra e dos materiais nacionais.
Um momento importante nessa descoberta foi a homenagem que o estilista Ronaldo Fraga fez em sua coleção “Quem matou Zuzu Angel”, de 2001, contribuindo, assim, “para a imagem de Zuzu que começava a se formar em minha imaginação”. Com o passar do tempo, tendo como fio condutor a moda, Virginia fez um mergulho na história do Brasil do século 20. Em recorte desse tempo, ela conta sobre os primeiros passos da mineira no ateliê em Ipanema, no Rio, até os desfiles em Nova York, com a clientela formada por grandes figuras do showbiz e do empresariado. “Zuzu Angel, o nome brando de um drama. A moda, a carreira, a família, o Brasil, o mundo, a violência, o desamparo, a fúria. Um relato fascinante, acurado e sofisticado de Virginia Starling”, escreveu a jornalista e consultora de moda Gloria Kalil sobre o livro.
LIÇÕES DA MESTRA
Qual seria a palavra mais adequada para definir Zuzu Angel? “Sempre que me pedem para defini-la em uma palavra, digo liberdade. Mais do que coragem, que não lhe faltava, ela buscou a liberdade em tudo: na moda feminina, na política, no ser mulher. Na moda, defendia que tudo era questão de liberdade e que a mulher podia vestir o que quisesse, desde que se sentisse bem”, destaca a autora, que vai além. “Na política, enfrentou a ditadura militar levantando uma bandeira – o seu direito, como mãe, de enterrar o filho – e reivindicou o fim da tortura e dos desaparecimentos. Na vida, denunciou desigualdades de gênero, afirmou-se feminista e encarou preconceitos para virar uma empresária de sucesso, lutando pelo respeito à moda brasileira”. Em resumo, “Zuzu nos mostra que é possível criar o novo com aquilo que temos – nosso ofício, nossos talentos, nossa imaginação”
Caso tivesse a chance de se encontrar com Zuzu, Virginia sabe de cor a primeira palavra que falaria: “Obrigada”. E por quê? “Tenho vontade de agradecê-la por ter sido mulher tão corajosa e por ter contribuído de modo tão indelével para a moda e a história brasileiras. Imagino que ela repetiria, para mim, que coragem tinha seu filho – ela tinha legitimidade. Eu não sei se teria o despeito de contradizê-la e argumentar que ela tinha, sim, muita coragem (assim como Stuart também teve, claro). Mas tenho certeza de que, em seguida, eu começaria a fazer um milhão de perguntas, pois seria incrível ouvi-la. Até me embolaria nas palavras para formular a primeira. Daria tudo para ouvir, na voz dela, as histórias que tentei resgatar em outras fontes – saber o que sentiu, no que estava pensando em determinados momentos.”
ENTREVISTA/VIRGINIA STARLING
(Escritora e tradutora)
“Zuzu Angel foi a primeira designer de moda a realizar um desfile político”
A primeira pergunta é bem direta e de cunho pessoal: após tanta pesquisa sobre Zuzu Angel, você descobriu “quem é essa mulher”?
No livro, eu afirmo que não há resposta única para essa pergunta. Toda biografia é apenas uma versão possível da vida de uma pessoa – e não dá para capturar uma vida por completo em cem, quinhentas ou mil páginas. Mas eu diria que, depois de anos de pesquisa e reflexões, consegui elaborar uma resposta aprofundada e pessoal para explicar “quem é essa mulher”. Aprofundada, pois tento olhar para Zuzu a partir de diferentes perspectivas; pessoal, pois se trata da minha visão sobre essa mulher formidável. Agora, para entender o meu relato sobre ela, convido a ler o livro…
Você tem apenas 30 anos. De que forma “conheceu” Zuzu Angel?
Por meio de revistas, entrevistas da filha dela, Hildegard Angel, em conversas em família ou na Faculdade de Comunicação? Sempre li e estudei muito sobre moda. É um interesse que me acompanha desde a adolescência. Foi nessas leituras e pesquisas que encontrei Zuzu como a primeira designer de moda a realizar um desfile político. Também li sobre seus esforços em fundar uma moda brasileira e suas preocupações com a valorização da mão de obra e dos materiais nacionais. O resgate e a homenagem que Ronaldo Fraga realizou em sua coleção “Quem matou Zuzu Angel”, de 2001, contribuíram para a imagem de Zuzu que começava a se formar em minha imaginação. Nessa época, porém, eu não imaginava que escreveria sobre ela. Essa oportunidade só veio em 2020 e foi irrecusável. Deu vazão à minha paixão por moda e foi a chance de descobrir mais sobre Zuzu, indo além do desfile protesto de 1971. Realizei, no final das contas, um mergulho na história do Brasil do século 20.
Como foi o processo de produção da obra?
O trabalho de pesquisa começou no início de 2021, no mês de fevereiro. E durou mais de dois anos: só fui começar a escrever, mesmo, já no meio de 2023 (e a versão final da biografia ficou pronta este ano, no primeiro semestre). Li extensamente – não só sobre Zuzu, todos os trabalhos e reportagens publicados até então, mas para englobar o período em que ela viveu e trabalhou. Livros, teses, dissertações e artigos sobre o contexto político e cultural, a indústria da moda, o movimento de resistência à ditadura militar, as cidades do Rio, Belo Horizonte e Nova York, o feminismo... além dessas obras, documentos de arquivos foram essenciais. Recorri ao Arquivo Nacional, ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), à Biblioteca do Congresso em Washington, ao Centro de Memória do Minas Tênis Clube e ao Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, entre outros, em busca de material sobre Zuzu, Stuart, a família Angel Jones e demais personagens que participaram dessa história. Também acessei os relatórios e depoimentos disponibilizados pelas Comissões Estadual (RJ) e Nacional da Verdade.
E teve muitas viagens, certo?
Visitei Curvelo e fiz viagens de pesquisa ao Rio, onde aproveitei para caminhar pelas ruas onde ela morou em Ipanema e na Barra – e passar pelo Túnel Zuzu Angel, para visualizar e entender o local onde o assassinato ocorreu. As entrevistas de familiares e amigos foram indispensáveis, pois me forneceram a chance de enxergar a mulher Zuzu pelos olhos de quem a conheceu de fato. Outra fonte de pesquisa importante foram os jornais e revistas. Por meio das hemerotecas da Biblioteca Nacional e da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais, bem como dos acervos digitalizados de jornais como “O Globo”, “Folha de S. Paulo”e “The New York Times”, pude reconstituir eventos da trajetória pública de Zuzu e resgatar algumas de suas entrevistas. O acervo digitalizado do Instituto Zuzu Angel foi, é claro, fundamental para enriquecer a minha pesquisa, com fotos, cartas e imagens das roupas criadas pela costureira.
O que mais a estimulou e encantou ao decidir escrever sobre Zuzu Angel?
Um dos desafios na escrita foi ter consciência de que esta é a primeira biografia de Zuzu. O livro ‘Eu, Zuzu Angel, procuro meu filho’, de 1986, se concentra principalmente nos esforços empreendidos para localizar o corpo de Stuart e descobrir o que havia acontecido. Meu objetivo, desde o princípio, era me aproximar de Zuzu em três frentes: a mulher, a criadora de moda e a mãe que resistiu à ditadura. Queria que os leitores descobrissem outras facetas dela, além das mais conhecidas, e se encantassem com a mulher divertida, alegre e criativa que construiu uma marca bem-sucedida de moda, ao mesmo tempo em que teceu uma denúncia política poderosa contra o autoritarismo e a violência do governo militar. O que também me moveu, durante todo o período de trabalho, foi a certeza de que, quanto mais obras sobre Zuzu, melhor – é preciso garantir que não nos esqueçamos de quem foi essa mulher.
A mineira de Curvelo foi uma estilista talentosa, mas também uma mulher extremamente destemida na busca pelo corpo do filho. Essa foi a parte mais difícil da obra? Você se emocionou muito nessa parte, tanto na apuração quanto na escrita?
Tenho de admitir: não houve parte fácil na construção dessa biografia. Entre as mais difíceis, estavam a morte de Zuzu e a prisão, tortura e morte de Stuart. As cenas de tortura de Stuart foram particularmente árduas para escrever, por causa da violência revoltante das sevícias. Para mim, é muito impressionante calcular que sou mais velha do que Stuart jamais chegou a ser. Descrever práticas de tortura embrulha o estômago, mas é o que precisa ser feito. Não se pode diminuir a barbaridade do que ocorreu, ou seria um desrespeito à memória de Stuart Angel e de todos os brasileiros que morreram nas mãos de torturadores.
No seu trabalho de apuração, foram muitos desafios...
Em termos de apuração, as mortes de mãe e filho não foram as mais desafiadoras. Em termos de comparação: voltar lá atrás, na juventude de Zuzu, demandou muito mais esforço. Devido às investigações já realizadas, há uma amplitude de material disponível – relatórios, documentos oficiais, depoimentos – que pude utilizar para reconstruir ambos os assassinatos. Escrever, contudo, é outra história. Especialmente na vez de Zuzu. Não escrevi o livro na ordem dos capítulos, mas a parte do acidente fatal com o Karmann-Ghia foi uma das últimas em que trabalhei. Foi duro, me emocionei bastante, pois meu envolvimento com a história dela era total.
O livro tem, na abertura, uma epígrafe de Sófocles (Antígona). Você imaginou Zuzu como personagem de uma tragédia grega transposta para o período da ditadura militar, no Brasil, encarando desafios e perigos?
Na verdade, não. Tomei muito cuidado para tratar Zuzu como uma mulher real em todas as suas contradições, complexidades e nuances. Parecia-me essencial fugir dessa caracterização de personagem trágica ou dramática, pois esse tipo de aproximação incorre em um grande risco: o de afastá-la da história real, de transformá-la em uma espécie de ideal ou mito. Zuzu não foi personagem trágica, foi mulher. A minha intenção, ao citar trechos da Antígona, era resgatar uma referência poderosa de enfrentamento feminino à tirania. Não se trata de uma referência inédita – outras pessoas já se lembraram de Zuzu como uma Antígona moderna, em especial a ministra Carmen Lúcia, em um artigo de 1997 intitulado “O constitucionalismo contemporâneo e a instrumentalização para a eficácia dos direitos fundamentais”. Além da epígrafe na abertura, retomo a Antígona no vigésimo capítulo, onde narro o assassinato de Zuzu Angel. Assim como Antígona, Zuzu morreu porque desafiou as ordens do Estado e insistiu no seu direito de sepultar um ente querido. E, por isso, ambas foram mulheres que confrontam os limites entre público e privado.
O que mais te atraiu nessa referência?
Foi, justamente, a possibilidade de reforçar o posicionamento de Zuzu como uma pessoa política, que partiu da sua condição de mulher para atuar na vida pública – sem abandonar ou renegar seu gênero, sem se confinar ao ambiente privado historicamente designado à mulher. A lealdade de Antígona ao irmão e de Zuzu a Stuart empurra as duas à realização de atos políticos e de resistência: ainda que excluídas dos círculos de decisão e deliberação, as duas se tornaram agentes históricos. Enfrentar o poder público requer coragem. Lá atrás, na Antiguidade, a tragédia de Sófocles nos contou sobre Antígona. Essa tragédia ressoa como um eco até hoje e segue nos mostrando as mulheres que não se intimidam, não se dobram, exigem ser reconhecidas como cidadãs e buscam a liberdade.
Aos tempos atuais, qual a grande lição deixada por Zuzu Angel?
Zuzu foi mulher de inícios, como digo no livro. Sempre que me pedem para defini-la em uma palavra, digo liberdade. Mais do que coragem, que não lhe faltava, ela buscou a liberdade em tudo: na moda feminina, na política, no ser mulher. Na moda, defendia que tudo era questão de liberdade e que a mulher podia vestir o que quisesse, desde que se sentisse bem. Na política, enfrentou a ditadura militar levantando uma bandeira – o seu direito, como mãe, de enterrar o filho – e reivindicou o fim da tortura e dos desaparecimentos. Na vida como mulher, denunciou desigualdades de gênero, afirmou-se feminista e encarou preconceitos para virar uma empresária de sucesso, lutando pelo respeito à moda brasileira. Várias das barreiras que ela precisou derrubar continuam de pé, mesmo hoje – mesmo em uma democracia. Zuzu nos mostra que é possível criar o novo com aquilo que temos – nosso ofício, nossos talentos, nossa imaginação. Ela foi a mulher que bordou um protesto político; que atravessou barreiras policiais como se de nada fosse para entregar um dossiê a um dos homens mais poderosos do mundo à época; que imaginou uma Nova Mulher sem idade, sem medos e sem sutiã; que criava roupas alegres e coloridas enquanto suportava a pior dor de uma mãe. Mulher que entrou na cena pública com suas agulhas e tesouras, Zuzu exigiu liberdade para mudar o que oprimia, prendia e matava. Morreu por isso. Precisamos nos lembrar, consolidar a sua memória, para impedir que a história se repita. E seguir mudando, exigindo liberdade em tudo. Como ela fez.
O acidente de carro da qual ela foi vítima até hoje não foi esclarecido. No seu livro, você avança nessa investigação?
Em uma nota de referência no capítulo sobre o acidente, eu afirmo que a reconstrução exata do acidente é inviável. Acredito que, infelizmente, não consigamos precisar a dinâmica do que aconteceu e determinar com certeza os atores envolvidos. Muitas pessoas já faleceram, documentos foram destruídos. A resposta a que podemos chegar é uma aproximação lógica, a qual explico em detalhes no livro. Aliás, acredito que a contribuição do meu trabalho seja reunir, em uma narrativa coesa, tudo o que já foi levantado, aventado, sugerido e comprovado a respeito do acidente. São informações que estão espalhadas em arquivos, relatórios, documentos, depoimentos e notícias jornalísticas, mas geralmente o que se conta é uma síntese dos pontos fundamentais dessas fontes. No livro, tentei reconstituir o dia de Zuzu anterior ao acidente, as primeiras investigações policiais, o passo a passo da repressão para controlar o que se dizia sobre a morte da costureira, as repercussões e, com o passar dos anos, os esforços da família para reabrir o caso, que produziram novas descobertas e levaram à retificação da certidão de óbito de Zuzu.
Se pudesse encontrá-la, qual seria sua primeira palavra?
Sem dúvida, seria Obrigada. Eu tenho vontade de agradecê-la por ter sido mulher tão corajosa e por ter contribuído de modo tão indelével para a moda e a história brasileiras. Imagino que ela repetiria, para mim, que coragem tinha seu filho – ela tinha legitimidade. Eu não sei se teria o despeito de contradizê-la e argumentar que ela tinha, sim, muita coragem (assim como Stuart também teve, claro). Mas tenho certeza de que, em seguida, eu começaria a fazer um milhão de perguntas, pois seria incrível ouvi-la. Até me embolaria nas palavras para formular a primeira. Daria tudo para ouvir, na voz dela, as histórias que tentei resgatar em outras fontes – saber o que sentiu, no que estava pensando em determinados momentos.
Escrever uma biografia deve ser também conviver com “um mundo invisível”. Em algumas vezes, você sonhou ou sentiu Zuzu perto de você, como se guiasse seu caminho?
Tive dois momentos especialmente emocionantes durante o meu período de trabalho. O primeiro aconteceu na sala de consultas do CPDOC, no Rio de Janeiro. Foi lá que, pela primeira vez, tive nas mãos um documento escrito por Zuzu: um envelope que ela enviou ao marechal Cordeiro de Farias, contendo um bilhete ao militar e sua esposa, além de cópias de cartas já encaminhadas a Geisel e Sylvio Frota. Já tinha lido várias cartas com sua caligrafia, mas eram versões digitais. É muito diferente segurar o papel, ver a cor rosa da tinta da caneta que ela usou. A segunda ocasião foi aqui, em Belo Horizonte, na Casa Fiat de Cultura, na exposição “Nó – o enlace da renda e da chita”. Eu me aproximava do fim do trabalho com o livro, estava prestes a entregar uma versão editada do manuscrito, mas pude ficar perto de um dos vestidos de noiva criados por Zuzu, feitos com renda nordestina. Só não deu para tocar. Visitei a exposição com a pesquisadora que me ajudou em todo o processo, a historiadora Isabella de Souza, e foi um grande momento para nós duas. Nesses dois episódios, por estar em contato com objetos manuseados pela Zuzu, tive a nítida sensação de proximidade. Ela apareceu em meus sonhos algumas vezes, invariavelmente como uma figura que eu buscava, de quem eu corria atrás. Foram quase cinco anos de convivência. Sei que isso não se compara à relação que suas filhas, irmãs, amigas e colegas de butique e ateliê tiveram. No entanto, já está sendo difícil me acostumar a não pensar nela diariamente e me afastar do mundo em que ela viveu. Zuzu me ensinou muito. Vou levá-la sempre comigo.
TRECHOS DO LIVRO
“A insistência na moda livre revela que Zuzu sabia articular o vestuário à pauta feminista da autonomia da mulher sobre a própria aparência e o próprio corpo. Às mulheres, não cabia unicamente o papel de vítimas da moda. A criação, a execução, o uso e o valor das roupas podiam ser etapas de um processo catártico de autodescoberta, ou mesmo de redefinição de identidades. Sobretudo em um contexto de severa repressão dos direitos políticos e civis, no qual cada movimento pode ser vigiado e, portanto, punido, a aparência e a roupa irrompiam como um reduto do eu. Nada estava realmente a salvo dos preconceitos e das convenções, mas, numa sociedade de vigilância e incerteza, elas talvez demarcassem um dos mais importantes espaços restantes de manifestação das liberdades individuais. Por seu pressuposto de se desvencilhar do que domina e restringe, uma moda livre podia, ainda por cima, se descobrir brasileira. Não havia nada de frívolo no empenho por essa forma de liberdade.”
“Aos 51 anos, Zuzu dizia ter começado a sentir o peso da idade – não como fardo, mas como potencial. Tinha criado, à sua imagem, a mulher que desejava se vestir com as roupas de sua quinta coleção internacional: ‘Sensível e feminina como Zuzu’, lia-se no release da IDC V, ‘inspirada na mulher de hoje, a mesma mulher de sempre, aquela que deseja tão somente ser vista e amada como mulher’. Apostava em sua sensibilidade, reafirmava sua feminilidade e se agarrava à ‘força de mineira forte’. Zuzu não se prendia mais à inquietação de desconhecer quem era, de ignorar até onde podia chegar.”
“Dois meses antes da madrugada em que pegou seu Karmann-Ghia e rumou para casa, Zuzu conversou com um correspondente americano. Ela tinha acabado de entregar o dossiê a Kissinger e a adrenalina ainda percorria seu corpo: tinha ido longe em sua campanha por Stuart, muito mais longe do que ousava imaginar. Foi com um sorriso bem-humorado e o tom de quem está meio admirada, meio perplexa que resumiu tudo isso para o jornalista em uma única frase: ‘Eu mudei bastante, não é mesmo?’, exclamou para Bruce Handler.”
“QUEM É ESSA MULHER? – UMA BIOGRAFIA DE ZUZU ANGEL”
De Virgínia Siqueira Starling
560 páginas
R$ 159,90 (livro físico) e R$ 109,90 (e-book)
Lançamento neste sábado (22/11), às 11h, com sessão de autógrafos, na Livraria da Rua (R. Antônio de Albuquerque, 913, Funcionários, Belo Horizonte) em bate-papo da autora, Virgínia Siqueira Starling, com Angélica Adverse.