BH pode ser a primeira capital a proibir propaganda de bets
Câmara de BH mira publicidade de apostas e pode liderar movimento nacional contra as plataformas de apostas
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Siga noA Câmara Municipal de Belo Horizonte deu início a uma ofensiva legislativa contra a proliferação das apostas eletrônicas e jogos de azar na cidade. Projetos de lei apresentados por dois vereadores de campos políticos distintos, Wagner Ferreira (PV) e Pedro Rousseff (PT), propõem a proibição da publicidade, promoção e patrocínio de plataformas de apostas virtuais, como o popular “Tigrinho”, em espaços públicos, equipamentos urbanos e eventos na capital mineira.
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As medidas vão além do simbólico: se aprovadas, colocam BH na vanguarda nacional de uma tentativa de regulamentação local para enfrentar os efeitos da ludopatia, transtorno compulsivo por jogos, reconhecido como problema de saúde pública.
“BH não pode esperar”
Autor de dois projetos — um que proíbe a publicidade de bets e outro que institui o Dia Municipal de Conscientização sobre Apostas — o vereador Wagner Ferreira defendeu a atuação do Legislativo municipal diante do que considera um vácuo regulatório do Congresso Nacional. “A pauta é nacional, mas Belo Horizonte não pode ficar esperando o Congresso decidir como enfrentar o problema. O vício em jogos tem consumido a renda das famílias, provocado muito sofrimento e gerado inadimplência. A cidade tem competência para tratar disso dentro da sua esfera, como a publicidade, que é o foco do nosso projeto”, disse Wagner em entrevista ao Estado de Minas.
Wagner Ferreira (PV), vereador por BH
“Esse é um dinheiro que não retorna para o Brasil. Pelo contrário, sobrecarrega o sistema de saúde pública e agrava a crise econômica das famílias. A lógica é a mesma que enfrentamos no passado com a propaganda de cigarro. Belo Horizonte precisa protagonizar esse enfrentamento”, seguiu.
Questionado sobre a contradição de ser aliado do secretário da Casa Civil do Estado, Marcelo Aro, cujo grupo familiar comanda a Federação Mineira de Futebol (FMF) há décadas, Wagner foi enfático: “Não incomoda. Estamos falando aqui de fonte pública, de vício que afeta as pessoas. O futebol tem outras fontes de patrocínio. E outros vereadores do nosso grupo, como a Flávia Borja, também assinou o projeto. A saúde da população vem primeiro”, afirmou.
Wagner também criticou a CPI das Apostas no Senado Federal. “Virou uma banalização de um ponto seríssimo. O Congresso perdeu a chance de discutir uma política pública real. Mas a política de verdade, que se preocupa com a saúde e com a renda da população, precisa continuar. Não é política de lacração por like.”
“Se fosse por mim, proibiria o Tigrinho”
Já o vereador Pedro Rousseff (PT) adotou tom mais direto. Autor da chamada “Lei Antitigrinho”, ele quer banir toda forma de publicidade, direta ou indireta, em rádio, TV, internet, outdoors, eventos, táxis, ônibus e redes sociais, além de impedir a pré-instalação de aplicativos de apostas em dispositivos vendidos na cidade.
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“A ação é por conta do total descontrole do poder público na regulamentação desse tipo de atividade, que tem sido extremamente prejudicial, principalmente para os mais pobres. Conhecemos casos de gente vendendo carro, casa, deixando de comer para bancar uma perda no Tigrinho. Se fosse por mim, eu proibiria a instalação desses aplicativos em BH”, afirmou.
Pedro Rousseff (PT), vereador por BH
O vereador cita relatos de moradores que perderam tudo em questão de semanas e jovens que entram no vício ainda na adolescência. “Não é um exagero. É realidade. Recebi uma mãe em prantos no meu gabinete. O filho começou apostando escondido, perdeu o estágio, trancou a faculdade e hoje vive à base de remédio. Isso está acontecendo nas nossas escolas, nos nossos bairros. Não dá para naturalizar.”
Rousseff também rebatu críticas sobre o foco restrito do projeto. “Nosso foco é o Tigrinho. Não se trata de aposta no time do coração, com alguma paixão envolvida. É jogo de azar puro. Não tem explicação nenhuma. Ninguém joga porque ama o Tigrinho. As pessoas jogam por desespero, vício, compulsão.”
Além da proposta de proibição da publicidade, o petista apresentou um terceiro projeto de lei: uma política municipal de atenção à saúde mental voltada especificamente para vítimas da ludopatia. A proposta prevê campanhas educativas, formação de profissionais de saúde e acolhimento psicológico. “O que nós queremos é um SUS municipal que saiba acolher esse novo sofrimento. Não é moralismo. É cuidado. É prevenção. A Prefeitura não pode fingir que esse problema não existe”, afirmou.
Emergência
A urgência da regulamentação local é reforçada por uma pesquisa divulgada pelo Instituto Locomotiva, segundo a qual seis em cada dez apostadores brasileiros utilizaram plataformas irregulares em 2025, mesmo após a entrada em vigor da nova legislação federal. O levantamento, feito com dois mil entrevistados, revela que:
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78% têm dificuldade de distinguir sites legais dos ilegais;
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72% não conseguem verificar a regularidade das plataformas;
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46% já colocaram dinheiro em sites falsos ou não autorizados.
Segundo o instituto, as camadas de menor renda e escolaridade são as mais afetadas, muitas vezes enganadas por influenciadores que divulgam plataformas ilegais com promessas irreais de lucro fácil. “Os dados representam mais do que um diagnóstico do setor. São um chamado urgente para uma ação coordenada entre autoridades, operadores licenciados e a sociedade civil, com o objetivo de proteger o cidadão, garantindo a integridade e a sustentabilidade do setor de apostas no Brasil”, destacou o relatório.
Legislação
Consultado pela reportagem, o jurista e professor de Direito Público Humberto Reis avalia que os projetos estão dentro dos limites constitucionais, desde que não tentem impedir o funcionamento de plataformas legalmente autorizadas pela União. “A exploração econômica das apostas é competência da União, mas os municípios têm autonomia para regular os efeitos locais dessa atividade. Ao proibir a publicidade de bets em espaços públicos, a Câmara de BH não está proibindo o funcionamento das plataformas — o que seria inconstitucional —, e sim exercendo sua competência sobre saúde pública, ordenamento urbano e proteção ao consumidor.”
Reis também afirmou que outdoors, estádios públicos e painéis digitais estão claramente sob controle municipal, e, portanto, podem ser alvos de regulação. “A Câmara tem legitimidade para proibir a publicidade de apostas em outdoors, painéis de LED e até estádios, desde que esses espaços estejam sob regulação urbana municipal. É o mesmo princípio usado para restringir propaganda de cigarro ou álcool: proteger a saúde pública e o espaço urbano.”
No caso de influenciadores digitais, porém, o jurista alerta para riscos constitucionais. “Restringir influenciadores em redes sociais é juridicamente mais delicado. As redes fazem parte de uma esfera privada protegida pela liberdade de expressão e pelo direito ao exercício da atividade econômica. Qualquer vedação precisa ser específica, proporcional e muito bem fundamentada — senão, corre o risco de ser considerada inconstitucional.”
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Com a tramitação dos projetos prevista para as próximas semanas, BH pode se tornar a primeira capital brasileira com um conjunto articulado de leis para restringir a influência das apostas online no espaço urbano e na vida social. Para os autores, o objetivo vai além da regulação: é uma disputa pela soberania da cidade diante de um fenômeno que já deixou o campo do entretenimento e se transformou em problema de saúde pública.