Adesivos colados nos portões e janelas dos barracos na Vila da Luz, às margens da BR-381, em Belo Horizonte, indicam que, em breve, as famílias deverão sair dali. Elas residem no trecho de 31 km que se estende entre Belo Horizonte e Caeté, que terá de abrir espaço para a duplicação da chamada “Rodovia da Morte”.
Agora, a assinatura de um acordo entre o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) e o Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), marcada para esta sexta-feira (7/11), promete enfim, definir o destino das famílias que há anos vivem no improviso às margens da rodovia.
Mas, depois de décadas ouvindo promessas de que seriam retirados dali, a notícia chega à comunidade em uma mistura de alívio e desconfiança. Há quem veja a assinatura do documento como o início de uma nova vida longe do perigo e quem prefira conter o entusiasmo, afinal, já perderam a conta das vezes em que disseram que o reassentamento “agora vai”. “Vai mudar, não mudar. Há muito tempo que a gente escuta essa conversa”, resume Elizete Grande dos Santos, de 63 anos.
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Hoje aposentada, ela luta contra dores nas pernas e na coluna e se equilibra para descer o barranco cimentado que leva à rua. “Já caí várias vezes. Quando chove, é um perigo. Quero sair daqui, sim. Muito tempo que eu quero, mas tenho minhas dúvidas se vai acontecer mesmo”, diz.
O novo termo de compromisso, previsto para ser assinado às 17h, encerra uma disputa iniciada em 2013, quando a PBH e o Dnit firmaram o primeiro acordo para remover famílias que viviam em áreas de risco ou na faixa de domínio da rodovia. À época, foram repassados R$ 5,3 milhões pela Caixa Econômica Federal para a compra de terrenos e a construção de moradias populares.
Os planos previam erguer 630 unidades habitacionais do programa Minha Casa, Minha Vida em uma área entre os bairros São Gabriel e Belmonte, na Região Norte da capital. Foram adquiridos 47 lotes, mas as casas nunca saíram do papel. Com o passar dos anos, os terrenos foram ocupados irregularmente, dando origem a um novo bairro, hoje com cerca de 12 mil moradores, pequenas construções, comércios e serviços, conforme descobriu a reportagem do Estado de Minas.
Enquanto isso, a duplicação da BR-381, prometida há décadas, continuava emperrada. Mas, para que isso aconteça, Elizete e quase duas mil pessoas têm que ser indenizadas e removidas de imóveis erguidos à beira da estrada. Em 2023, o governo federal decidiu alterar o edital de concessão da estrada e retirar do cronograma o trecho de entrada e saída de Belo Horizonte, considerado de alta complexidade técnica e jurídica, o que afastava o interesse da iniciativa privada.
A mudança destravou o processo de privatização do restante da via, entre Caeté e Governador Valadares, após três tentativas de leilão fracassadas. O trecho mais próximo da capital, agora, ficou sob responsabilidade da União, que também terá de bancar as indenizações e reassentamentos. Pelo novo acordo, as famílias deverão ser transferidas para o Bairro Capitão Eduardo, em um terreno de 2,2 milhões de metros quadrados, que será incluído no programa Minha Casa, Minha Vida.
Moradora há mais de duas décadas, Elizete dos Santos, 60, já viu acidentes fatais na porta de casa e espera há anos pelo reassentamento
Os detalhes do acordo serão divulgados na cerimônia desta sexta, mas, até que as novas moradias fiquem prontas, as famílias em áreas de risco devem receber aluguel social, segundo informações apuradas pelo Estado de Minas junto aos moradores. Somado, o custo das obras e da remoção de moradores é estimado em R$ 1,3 bilhão.
Hoje, cerca de 500 famílias vivem em casas improvisadas erguidas na comunidade Vila da Luz, onde o som dos caminhões se mistura às conversas nas portas e aos gritos das crianças que, muitas vezes, precisam dividir o asfalto com o tráfego pesado. Elizete mora ali há mais de duas décadas, tempo suficiente para ver o lugar crescer, virar “favelão”, como ela mesma diz, e acumular histórias trágicas. “Já vi muita gente morrer atropelada aqui. Foi anteontem mesmo, um lá embaixo e outro cá em cima. Quando o carro para, é porque teve acidente”, relata, sem disfarçar o cansaço.
Ela mesma perdeu um filho e uma nora atropelados na rodovia. Por isso, diz que não se apega à esperança de que, desta vez, a promessa será cumprida. “Disseram que já estavam mexendo com meus papéis. Eu não quero apartamento, não, por causa das escadas, mas quero ir. Tá bom demais sair daqui, bom demais pra ser verdade”, disse, resignada.
Por trás das paredes dos barracos às margens das rodovias, histórias de uma vida de luta por condições melhores de moradia. Quem precisou viver ao lado de vias bem movimentadas conta que espera uma opção melhor e mais segura para morar. Rosilene Rosa, 40 anos, atravessa a pista com o filho Davi, de 7, de mãos dadas, desviando dos carros. Faz isso todos os dias para levá-lo à escola. “A gente tem medo, mas é o único jeito”, diz, ajeitando a mochila do menino antes de esperar um intervalo no fluxo intenso de carros e caminhões.
Ela nasceu e cresceu na comunidade. Saiu, morou de aluguel por alguns anos, mas acabou voltando. “Foi a única casa que eu consegui comprar. Aqui é meu, mas o quintal da gente é a BR”, conta, rindo com resignação. Os filhos, Maria Eduarda, de 10, e Larissa, de 8, estudam em escolas próximas, e Rosilene nunca os deixa atravessar sozinhos. “Eles só vão aonde eu for. Não tem liberdade. Eu tenho medo de deixar eles brincarem. Um passo errado e pronto”, diz.
Mesmo cercada de riscos, Rosilene fala com um sorriso sobre a mudança que se aproxima. “Se for casa, prédio, tanto faz. O que vale é sair daqui. Quero um lugar com quintal, pros meninos poderem brincar. Aqui o quintal é a estrada.” “Eu moro aqui desde pequena. Já falaram que iam tirar a gente mil vezes, mas agora parece que vai mesmo”, diz, ajeitando a mochila do menino.
Há quatro anos na Vila da Luz, Carla Janaína de Paulo, 42, sonha com um novo lar longe da rodovia.
A dona de casa Carla Janaína de Paula, de 42 anos, também atravessa a BR-381 todos os dias com o neto, da mesma idade do filho de Rosilene. A travessia, que deveria ser simples, virou parte da rotina de risco. “Eu ensino ele a esperar o carro parar. Falo que não pode brincar de atravessar. É o que dá pra fazer”, conta.
A passarela construída para garantir segurança está tomada pelo tempo e pelo medo. Enferrujada, com buracos e trechos sem proteção, virou uma ameaça maior do que o próprio trânsito, segundo a moradora. “Prefiro passar no meio dos carros, quando o trânsito tá paradinho. Tenho mais medo de cair da passarela do que de ser atropelada”, diz, com uma franqueza que revela o costume com o perigo. Carla aguarda o reassentamento com esperança e um certo alívio antecipado. “Espero que o novo lugar seja mais fechado, mais seguro, porque aqui é complicado demais.”
Nem todos compartilham o mesmo entusiasmo. “Tem 18 anos que eu escuto isso”, diz a estudante Kiuane Eduarda Coelho — os mesmos 18 anos que ela passou ali, entre o barulho constante dos caminhões e o medo naturalizado de viver colada na pista. “Desde que nasci falam que vão tirar a gente daqui, mas eu só acredito quando o juiz vier aqui e disser que é pra olhar a casa nova”, afirma, apoiada no portão da casa que divide com a mãe e os irmãos.
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Ela, que aprendeu a atravessar a BR sozinha e hoje desvia dos carros com naturalidade, conta ter visto vizinhos irem e voltarem, indenizações acontecerem de forma desigual e projetos que nunca saíram do papel. “Tem gente que foi pra Ribeirão das Neves, mas voltou. A casa ficou lá parada. Eu já escutei isso a vida toda; mais dois, três anos não faz diferença”, desabafa.
