Depois de um período de retração das mobilizações de rua, Belo Horizonte voltou a registrar, nos últimos meses, uma sequência de atos políticos de grande porte em defesa da democracia e contra propostas em tramitação no Congresso Nacional, a pauta da anistia aos envolvidos nos ataques antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, o chamado PL da Dosimetria e a PEC da Blindagem. As manifestações, realizadas especialmente na Praça Raul Soares, marcam um novo ciclo de ocupação do espaço público em Minas Gerais e indicam uma rearticulação do campo popular democrático.

O PL da Dosimetria foi aprovado na Câmara dos Deputados na madrugada de 10 de dezembro e na semana passada no Senado. O projeto reduz penas de condenados pelos atos golpistas e funciona, na prática, como uma forma indireta de anistia. A votação desencadeou protestos em ao menos 22 capitais brasileiras, incluindo Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre e Brasília.

Na capital mineira, os atos mais recentes ocorreram em 21 de setembro e 14 de dezembro, reuniram milhares de pessoas e incorporaram não apenas pautas institucionais, mas também reivindicações sociais, culturais e trabalhistas. Para organizadores e participantes, o retorno às ruas expressa um esgotamento com o funcionamento do Congresso Nacional e uma tentativa de reconstruir canais diretos de pressão popular.

“O campo democrático popular está mais mobilizado, não apenas em Belo Horizonte, mas em todo o Brasil”, afirma Zotha, fundador e diretor da Teia de Criadores e um dos organizadores das manifestações. “Minha avaliação é que as pessoas estão cansadas de um Congresso que legisla em benefício próprio e não em defesa do povo.”

Segundo ele, o PL da Dosimetria funcionou como catalisador, mas não como causa única da mobilização. “Temos uma série de pautas urgentes que deveriam ser priorizadas, como o fim da jornada 6x1 e a investigação das emendas Pix, mas que continuam sendo negligenciadas. É vergonhoso ver deputados votando, na madrugada, uma anistia disfarçada para criminosos”, afirma.

Deputados

Entre parlamentares presentes aos atos, a avaliação é de que a retomada das ruas cumpre um papel central na defesa das instituições democráticas. Para o deputado federal Rogério Correia (PT-MG), a mobilização popular responde a um processo contínuo de ataque à democracia. “Já era hora. A esquerda ir às ruas junto com o movimento social é, em primeiro lugar, garantia de democracia”, afirmou. “O golpe continuado da extrema-direita está aí agora com a bandeira de anistia, dosimetria, coisas do tipo.”

Na mesma linha, a deputada estadual Bella Gonçalves (PSOL) avalia que o atual ciclo de mobilizações não representa um rompimento repentino com a política institucional, mas uma resposta aos limites evidentes do Congresso Nacional. “A esquerda sempre vai às ruas defender a democracia, defender os direitos”, afirmou.

“Quando ficou muito explícito que o governo, sozinho, não ia conseguir operar as medidas importantes para o povo brasileiro, porque o Congresso Nacional estava se colocando como inimigo, houve de fato essa convocação nas ruas que foi prontamente respondida.”, completa.

Segundo Bella, o retorno das manifestações ocorre no momento certo e tem como objetivo pressionar o Legislativo e ampliar a agenda de direitos. “Eu não vejo que a gente estava vivendo um tempo de imobilismo. A gente está se mobilizando no tempo certo para dar os recados certos ao Congresso Nacional e avançar pela defesa da nossa democracia, que ainda é bastante frágil”, disse.

Correia também avalia que a presença nas ruas tem impacto direto sobre o ambiente político e eleitoral. “A mobilização da sociedade diminui o poder de fake news e de redes sociais manipuladas. Então, em bom momento, a gente comemora a volta do povo às ruas e do movimento social se reorganizando.”

Palco progressista

A escolha da Praça Raul Soares como palco principal das manifestações também carrega um significado político. Nos últimos anos, a Praça da Liberdade passou a ser utilizada majoritariamente por atos da direita e da extrema-direita, tornando-se um espaço associado a manifestações conservadoras. A ocupação da Raul Soares pelo campo popular democrático explicita uma disputa simbólica pelo espaço público.

“A Praça Raul Soares é, sem dúvida, um dos lugares mais democráticos de Belo Horizonte”, afirma Zotha. “Ela conecta quatro das principais avenidas da cidade, ligando diversas regiões e facilitando o acesso, tornando o direito à cidade uma realidade prática.”

O ato de 14 de dezembro coincidiu com o primeiro domingo de tarifa zero no transporte coletivo da capital, o que ampliou o acesso à manifestação. “O ato de 14 de dezembro foi a cereja do bolo”, disse Zotha. “Representou a união de organizações da sociedade civil, movimentos sociais, artistas, criadores de conteúdo e lideranças políticas que se mobilizam para garantir direitos à maioria da população.”

Mesmo sob um governo federal alinhado ao campo progressista, os organizadores avaliam que a pressão das ruas continua necessária. “É muito importante que a sociedade civil continue pressionando para que o governo não negocie direitos inegociáveis com o Congresso”, afirmou Humberto Ribeiro, cofundador do Sleeping Giants Brasil. Segundo ele, pautas como o fim da escala 6x1 e a demarcação de terras indígenas só avançaram após pressão dos movimentos sociais.

Anseio por direitos

Para Humberto Ribeiro, cofundador do Sleeping Giants Brasil e um dos organizadores dos atos, os protestos recentes revelam algo mais profundo do que a reação a projetos específicos.

Segundo ele, o PL da Dosimetria e o debate sobre o 8 de janeiro tiveram papel central por unificarem diferentes setores em torno da defesa do Estado democrático de direito. “

São agendas que unificam em torno da defesa das instituições democráticas. Existe nos últimos anos, especialmente nesta legislatura do Congresso Nacional, um forte rompimento da população com a representação do Congresso”, diz.

Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia

Ele cita votações como o marco temporal, a manutenção da escala 6x1 e projetos relacionados à violência de gênero como exemplos de um parlamento distante das expectativas sociais.

compartilhe