A disciplinada e rígida carreira militar tem como regra de ouro o binômio “obediência e hierarquia”. Na versão popular, a norma ficou conhecida como “ordem dada é missão cumprida”, expressão usada com frequência nos processos sobre a tentativa de golpe de Estado. O lema apareceu nos depoimentos de réus e testemunhas, na denúncia da PGR (Procuradoria Geral da República), na delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid (foto em destaque), no desabafo do ex-comandante da Marinha almirante Almir Garnier, nas falas do ex-presidente Jair Bolsonaro e na boca do ministro do STF Alexandre de Moraes, relator do caso.

A tese do subalterno obediente está fundamentada nesses valores hierárquicos. Na caserna, a regra indica a obrigação de cumprimento de ordens de superiores e de respeito à cadeia de comando. No código militar, a desobediência é passível de pena de dois anos de prisão.

A mesma norma será uma das bases da argumentação dos acusados nos julgamentos, marcados para começar em 2 de setembro, de Jair Bolsonaro e dos outros 33 réus. Separados em quatro núcleos nos processos, quase metade dos denunciados são militares, da ativa ou da reserva. A maioria foi dividida em dois grupos: um é composto pelos acusados de pressionar comandantes a aderirem à trama golpista; o outro é formado pelos que teriam monitorado os passos de autoridades, especialmente Moraes, segundo a PGR.

Presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) nas eleições de 2022, o atual relator dos processos sobre a trama golpista foi alvo de uma missão clandestina, abortada durante a execução, colocada em prática em dezembro daquele ano por militares das Forças Especiais (grupo de elite conhecido como “kids pretos”). A ação previa prender, ou até matar, Moraes e os dois integrantes da chapa eleita, Lula e Geraldo Alckmin.

Nesse núcleo do processo, três réus são generais: Estevam Theophilo, Nilton Rodrigues e Mário Fernandes. Os demais são coronéis, tenentes-coronéis e um major. Seis são “kids pretos”. Nos próximos dias, esse grupo entregará suas alegações finais no processo e terá a hierarquia militar como um dos argumentos para justificar suas ações.

A missão só pode deixar de ser cumprida se for ilegal. Para isso, o subalterno precisa registrar a desobediência e provar a ilegalidade da ordem. Nos tribunais, a chamada “teoria da obediência cega” – ou “teoria das baionetas inteligentes” – é usada pelas defesas para excluir a culpabilidade dos réus que cometeram crimes em cumprimento de ordem superior – nesses casos, só é punível o autor da ordem.

“Coronel não influencia general, vossa excelência”, declarou o coronel Marcio Nunes Resende Jr, um dos “kids pretos” ouvido em interrogatório no final de julho. Com esse tipo de referência hierárquica, os réus buscam atacar a narrativa de crimes que a PGR listou da denúncia.

“Braço armado”

Um dos capítulos principais dos processos é o que aponta o réus das Forças Especiais como “braço armado” da tentativa de golpe. A tese é usada para desqualificar a narrativa de que subalternos teriam promovido reuniões, encontros e apresentado planos e documentos em busca de adesão dos generais ao golpe. Esses argumentos também têm o objetivo de reduzir penas, em caso de condenação. Foram citados, ainda, pela PGR contra a versão do delator Mauro Cid sobre seu papel “inocente” em encontros e atos de conspiração.

Ao ser interrogado por Moraes em julho, o ex-comandante da Marinha Almir Garnier, acusado por Cid de ter colocado a tropa à disposição de Bolsonaro, negou envolvimento em crimes e lançou mão exatamente das características da caserna para se defender: “O senhor sabe que nós estamos tratando de militares. A Marinha é extremamente hierarquizada e nós seguimos bem à risca o Estatuto dos Militares, que diz ‘a um subordinado é dado apenas o direito de pedir por escrito uma ordem que ele receba e considere flagrantemente ilegal’. (…) Até que isso aconteça, para mim são ilações, conversa de bar. Eu era comandante da Marinha, não era assessor político do presidente.”

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