O mês de setembro é marcado pela campanha nacional de conscientização para a doação de órgãos e tecidos. Entre eles, a córnea se destaca como um dos mais demandados no Brasil, devolvendo a visão e transformando a vida de milhares de pessoas e famílias. Em Minas Gerais, embora o Centro Oftalmológico de Minas Gerais seja referência na realização desses procedimentos, o cenário ainda impõe desafios preocupantes.
 
O impacto de um transplante
 
De acordo com Bernardo Tom Back, coordenador do Departamento de Córnea do Centro Oftalmológico de Minas Gerais, a transformação proporcionada por um transplante é profunda. “Muitos pacientes chegam à fila com visão extremamente limitada, às vezes abaixo de 10%, o que já é considerado cegueira legal. Embora não seja uma cegueira irreversível, é uma condição que retira praticamente toda a qualidade de vida do paciente. Quando devolvemos a visão — seja de um olho ou dos dois — estamos devolvendo o sentido mais nobre da vida. Acredito que a visão representa 80% da comunicação do ser humano com o mundo. Nada se compara a isso,” explica o médico.
 
 
As principais causas
 
O especialista explica também que, no Brasil, a principal causa de transplante de córnea ainda é o ceratocone em estágio avançado. “Isso é muito ruim, porque o ceratocone, quando diagnosticado precocemente, pode ser controlado para evitar o transplante. Isso mostra falhas do nosso sistema de saúde. Além dele, outras causas frequentes são as complicações após cirurgias de catarata difíceis, as chamadas ceratopatias bolhosas, além de cicatrizes provocadas por infecções na córnea, como úlceras bacterianas e herpes. Em menor escala, distrofias hereditárias também podem levar ao transplante”, relata Back.
 
Como funciona a cirurgia
 
O transplante depende de um passo inicial essencial: a doação. Black explica que “tudo começa com a captação de uma córnea viável pelos bancos de olhos, organizados pelo governo. O paciente inscrito na fila é chamado de acordo com critérios de tempo de espera e urgência. Hoje, temos dois tipos principais de cirurgia: o transplante penetrante, no qual substituímos toda a espessura da córnea, e os transplantes lamelares, mais modernos, nos quais trocamos apenas a parte doente e preservamos a parte saudável do olho do paciente. Isso traz vantagens como menor risco de rejeição, recuperação mais rápida e melhores resultados visuais”, disse.
 
 
Ele reforça, porém, que o sucesso depende da disciplina do paciente. “Independente da técnica, é um transplante de tecido. Isso exige cuidados rigorosos no pós-operatório: uso correto dos colírios, proteção do olho, evitar traumas, respeitar repouso e manter acompanhamento frequente com o oftalmologista. Esses cuidados fazem toda a diferença para preservar o resultado”, alerta.
 
O cenário em Minas Gerais
 
Segundo Paulo Lener Filho, coordenador do Núcleo de Tecidos Oculares do MG Transplantes, Minas Gerais enfrenta hoje o maior desafio de sua história. “A lista de espera por um transplante de córnea em Minas Gerais soma atualmente 4.429 pacientes, com tempo médio de espera de três anos e seis meses para procedimentos eletivos. Infelizmente, é a maior fila desde a criação do MG Transplantes, em 1992.”
 
Ele explica que a pandemia de Covid-19 agravou o problema. “Entre 2019 e 2021, o número de pessoas aguardando por uma córnea quase dobrou, passando de 1.270 para 2.473 pacientes. Isso ocorreu porque, naquele período, houve a interrupção temporária da captação de doadores de coração parado, que representavam cerca de 80% das doações de córneas em Minas. Hoje, a maior parte vem de doadores em morte encefálica, o que reduz o número de tecidos disponíveis e aumenta o tempo de espera”, disse.
 
O MG Transplantes, em parceria com a Secretaria Estadual de Saúde e a Fhemig, tem trabalhado em várias frentes para reverter esse quadro:
 
  • Retomada das CIHDOTTs (Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos), desarticuladas durante a pandemia.
  • Incentivos financeiros para hospitais que atingirem metas de captação.
  • Treinamento de equipes externas para captação de tecidos oculares em até seis horas após a parada cardíaca.
  • Criação de novos Bancos de Tecidos Oculares em Montes Claros e Itajubá (hoje Minas conta com três, em BH, Juiz de Fora e Uberlândia).
  • Campanhas de conscientização com foco no envolvimento da sociedade e dos profissionais de saúde.
 
“O envolvimento da sociedade é fundamental. Cada pessoa deve conversar com a família e manifestar seu desejo de ser doador. É a família quem dará a palavra final no momento da perda. Apesar da dor, essa decisão pode significar a realização de um desejo de vida do falecido e a oportunidade de devolver a visão a quem espera”, acredita Lener.
 
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