Pesquisa revela terapia com medicamentos contra doenças hereditárias
Estudo desvenda mecanismo celular envolvido na transmissão de mutações no DNA mitocondrial, que podem ser responsáveis por enfermidades graves e incuráveis
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Luciana Constantino
Pesquisa publicada na última edição da revista Science desvenda um mecanismo celular envolvido na herança de mutações genéticas e aponta caminho para um novo tratamento capaz de reduzir o risco de bebês nascerem com doenças mitocondriais, graves e incuráveis.
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As mitocôndrias constituem a principal fonte de energia dentro de todas as células e têm DNA próprio. Normalmente, logo após a fecundação, o embrião tem uma espécie de sistema de “controle de qualidade” para eliminar mitocôndrias “defeituosas”, chamado de mitofagia. Nesse processo, a proteína ubiquitina funciona como um marcador, que direciona as moléculas alteradas para a destruição.
A mitofagia mantém a harmonia entre o DNA mitocondrial (mtDNA) e o nuclear, garantindo que sejam compatíveis. No entanto, o mtDNA sofre mutações a uma taxa aproximadamente 15 vezes maior do que o genoma nuclear, o que representa um desafio para a relação simbiótica.
A enzima USP30 (sigla em inglês de Ubiquitin-specific peptidase 30) atua sobre a ubiquitina – consegue bloqueá-la e impede a “rotulagem”, reduzindo a eliminação. O desequilíbrio de USP30 tem sido associado a várias doenças, inclusive mitocondriais e neurodegenerativas. Um grande acúmulo de mutações resulta em incompatibilidade, gerando disfunção das mitocôndrias, com efeitos negativos para a saúde. Esse processo é conhecido na literatura científica.
Porém, há mutações mais amenas, que também causam doenças, mas passam despercebidas e não são eliminadas pelas células. Esse complexo mecanismo era ainda pouco compreendido.
Os resultados
Agora, os pesquisadores demonstraram in vivo que, em vez de ativar novas vias biossintéticas, as células respondem às mutações no mtDNA desativando o efeito marcador da ubiquitina.
Utilizando camundongos, os cientistas detectaram que, nos primeiros dias depois da fecundação, as mutações não são percebidas porque há uma superativação de USP30, inibindo que a ubiquitina marque os DNAs mitocondriais defeituosos e bloqueando a eliminação deles. Com isso, há um aumento da massa e do genoma mitocondrial, permitindo a transmissão das mutações que podem vir a causar doenças.
Na pesquisa, o grupo demonstrou que, ao impedir a atuação da USP30 usando o inibidor Compound 39 (CMPD39), é possível criar uma “janela de eliminação” dos DNAs mitocondriais alterados logo após a fecundação, período em que o embrião já eliminaria naturalmente as mitocôndrias paternas. Diferentemente do DNA nuclear, em que os filhos herdam metade do pai e o restante da mãe, no mtDNA toda a transmissão é feita pela mulher.
Os cientistas sugerem no estudo a possibilidade de tratar embriões precoces após a fertilização in vitro para reduzir o número de células com alta carga mutacional antes da implantação e também o direcionamento terapêutico da USP30 para tratamento ou prevenção de doenças hereditárias raras que afetam cerca de 1 em cada 8 mil pessoas.
“As doenças mitocondriais podem causar deficiências devastadoras e até impedir que algumas famílias tenham filhos. O Reino Unido aprovou uma nova forma de fertilização in vitro que pode evitar sua transmissão, mas, fora isso, não temos como prevenir essas doenças e há poucos tratamentos. Nossa descoberta aponta para uma possível nova terapia com medicamentos que poderia ajudar a interromper essas doenças no futuro, permitindo que as famílias tenham filhos saudáveis”, diz à Agência FAPESP o professor de Neurologia da Universidade de Cambridge Patrick Chinnery, autor correspondente do artigo.
Recentemente, uma equipe de pesquisadores da Universidade Newcastle conseguiu realizar uma técnica inovadora de fertilização in vitro que envolveu a substituição de DNA mitocondrial mutante das mães por outras mitocôndrias de doadoras saudáveis. O tratamento foi chamado de terapia de substituição de mitocôndrias. Nasceram oito bebês – quatro meninos e quatro meninas – que podem ter sido protegidos de doenças mitocondriais. O resultado foi divulgado na revista The New England Journal of Medicine.
“Sabemos que essa técnica envolvendo a substituição de mitocôndrias é controversa e só foi aprovada, por enquanto, na Inglaterra e na Austrália. Com a nossa pesquisa, mostramos que há outras possibilidades, principalmente farmacológicas, para tratar o embrião e evitar a transmissão desses tipos de doença”, complementa o professor do Departamento de Genética e Evolução da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Marcos Roberto Chiaratti, único autor brasileiro do artigo publicado na Science.
A pesquisa recebeu apoio da FAPESP por meio de um projeto temático realizado em chamada conjunta com o Biotechnology and Biological Sciences Research Council. O projeto é conduzido por Chiaratti, com a participação de Chinnery, para estudar mecanismos moleculares que modulam a transmissão pela linhagem germinativa de variantes de mtDNA.
O que são
As doenças mitocondriais são distúrbios metabólicos hereditários que afetam o funcionamento das mitocôndrias podendo resultar em lesão de órgãos vitais, como cérebro e coração. Entre as mais comuns estão neuropatia óptica hereditária de Leber (LHON), as síndromes de Leigh e a conhecida como MELAS (encefalopatia mitocondrial, acidose láctica e episódios semelhantes a acidente vascular cerebral).
Os sintomas variam de acordo com as células afetadas – vão desde problemas no crescimento, atrasos no desenvolvimento cognitivo, fraqueza e dor muscular até perda de visão e/ou audição e convulsões.
Não existem tratamentos específicos disponíveis para essas doenças, sendo que, em alguns casos, há o uso de medicamentos para controlar os sintomas. Os diagnósticos costumam ser complexos, com investigação detalhada de dados clínicos do paciente combinada a outros tipos de exames, como biópsia muscular, análises bioquímicas e testes genético-moleculares.