Além da estatura: ciência avança no tratamento do nanismo; acesso é desafio
Aprovado pela Anvisa, remédio pode transformar a vida de pacientes com acondroplasia, mas alto custo empurra famílias para o complexo caminho da judicialização
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A acondroplasia, a forma mais comum de nanismo desproporcional, deixou de ser vista pela medicina apenas como uma característica física para ser tratada como uma condição genética complexa que exige intervenção precoce. Recentemente, a aprovação do medicamento Voxzogo (vosoritida) pela Anvisa abriu um novo capítulo para milhares de famílias, mas trouxe consigo um debate sobre o alto custo e o direito à saúde.
Causada por uma mutação no gene FGFR3, a condição afeta cerca de um em cada 25 mil nascimentos. No Brasil, embora não haja um censo exato, estima-se que milhares de pessoas vivam com a mutação que impede o crescimento normal das cartilagens nos ossos longos.
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Diferente do que o senso comum sugere, os desafios vão além da baixa estatura. A condição pode desencadear complicações graves, como:
- Compressão medular e do tronco cerebral: a base do crânio (forame magno) mais estreita pode comprimir o tronco cerebral, exigindo cirurgias de altíssimo risco
- Apneia do sono: o desenvolvimento facial atípico causa dificuldades respiratórias severas
- Deformidades ortopédicas severas: o arqueamento das pernas e alterações na coluna geram dor crônica e limitam o caminhar
- Otites de repetição: problemas no ouvido médio podem levar à perda auditiva permanente
"Não se trata apenas de altura", explica a bacharel em Direito, integrante da Comissão de Direito do Instituto Nacional de Nanismo, Susy Brandão. "A mutação genética faz com que o corpo produza, ainda no útero, uma proteína que deveria surgir apenas na fase adulta para frear o crescimento. Isso impede o desenvolvimento ósseo e gera comorbidades graves".
Voxzogo
Até pouco tempo, o tratamento limitava-se a cirurgias de alongamento ósseo, procedimentos invasivos e dolorosos. Agora, o medicamento Voxzogo surge como a primeira terapia medicamentosa que atua na raiz do problema, bloqueando o sinal genético que impede o crescimento. Lançado pela farmacêutica BioMarin, teve seu desenvolvimento culminado em aprovações regulatórias globais no ano de 2021.
Estudos clínicos apontam que o fármaco não apenas auxilia no ganho de altura (cerca de 1,5 cm a mais por ano em relação ao grupo controle), mas também melhora a proporção corporal e pode reduzir a necessidade de intervenções cirúrgicas futuras.
Impasse
A eficácia da medicação esbarra em uma cifra astronômica. O tratamento anual pode ultrapassar R$ 1,4 milhões por paciente, tornando-o inacessível para a maioria da população brasileira.
O cenário se agrava justamente porque a medicação ainda não foi incorporada ao Sistema Único de Saúde (SUS). Para que isso ocorra, o medicamento precisa passar pelo crivo da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC), que avalia o impacto orçamentário e custo-efetividade. Sem essa diretriz oficial (o chamado PCDT), o fornecimento não é automático.
“Atualmente, o medicamento possui registro na Anvisa, mas ainda não foi incorporado à lista de fornecimento regular do SUS, pela CONITEC, nem ao rol de coberturas obrigatórias da ANS para todos os casos. Esse vácuo regulatório tem empurrado as famílias para os tribunais”, diz Susy.
O caminho da judicialização
Para garantir o direito ao tratamento, muitos pacientes têm recorrido à Justiça. Susy Brandão esclarece que a jurisprudência brasileira, baseada no Artigo 196 da Constituição Federal, tem sido favorável aos pacientes, desde que preenchidos requisitos específicos:
- Imprescindibilidade: laudo médico detalhado provando que não há outras alternativas eficazes
- Registro sanitário: o medicamento deve estar aprovado pela Anvisa
- Incapacidade financeira: comprovação de que a família ou o paciente não podem arcar com o custo
As decisões favoráveis têm se baseado em três pilares fundamentais:
- Laudos médicos robustos: comprovação da necessidade específica e da urgência do caso
- Princípio da integralidade: o dever constitucional do Estado de fornecer tratamento preventivo e curativo
- Dignidade da pessoa humana: o uso da Lei Brasileira de Inclusão (Estatuto da Pessoa com Deficiência) para garantir que a criança tenha as mesmas oportunidades de desenvolvimento que uma pessoa de estatura típica
“A Justiça tem entendido que a saúde é um direito fundamental e que a negativa baseada apenas no custo financeiro não deve prevalecer sobre a vida e a dignidade da criança. O Voxzogo atua justamente neutralizando complicações que podem ser fatais”, explica Susy.
A janela de oportunidade
O tempo é o maior inimigo dos pacientes. O Voxzogo só é eficaz enquanto as placas de crescimento ósseo ainda não se fecharam (geralmente até o final da puberdade). Por isso, o atraso provocado por burocracias ou negativas de planos de saúde pode significar a perda irreversível da oportunidade de tratamento.
Enquanto associações de pacientes lutam pela incorporação do fármaco nas políticas públicas, o Poder Judiciário continua sendo a última esperança para crianças que buscam não apenas crescer em centímetros, mas em qualidade de vida e autonomia. O problema agora é que a Justiça tem determinado a suspensão do remédio para muitas famílias que precisam, alegando falta de comprovação sobre a eficácia do produto.
Susy lembra que o nanismo é reconhecido como deficiência física no Brasil há quase duas décadas, desde o Decreto nº 5.296 de 2004. No entanto, para centenas de famílias brasileiras, o reconhecimento no papel ainda não se traduz em acessibilidade plena na vida real.
“Atualmente, o novo campo de batalha não é apenas o das calçadas ou balcões inacessíveis, mas o dos tribunais. O motivo é justamente o acesso ao Voxzogo, primeira medicação capaz de tratar a causa genética da forma mais comum de nanismo, a acondroplasia.”
O medicamento representa um marco histórico, reforça Susy. Diferente de tratamentos paliativos, o Voxzogo atua diretamente no gene FGFR3, que em pessoas com acondroplasia inibe o crescimento ósseo normal. O argumento central é o da isonomia material: tratar os desiguais de forma desigual para que a desigualdade seja mitigada.
"O medicamento estimula o crescimento ósseo, resultando em ganho de altura, mas, mais importante, melhora a qualidade de vida e a autonomia", explica. O tratamento pode prevenir complicações graves que acompanham o nanismo ao longo da vida, como: apneia do sono, dores lombares crônicas, necessidade de múltiplas e dolorosas cirurgias ortopédicas corretivas.
“Na prática, o direito à saúde para crianças com nanismo no Brasil hoje depende de uma canetada judicial. Enquanto as políticas públicas não alcançam a velocidade da ciência, a Justiça torna-se a única via para garantir que o futuro desses pacientes seja menos marcado por limitações físicas e mais por autonomia”, aponta Susy.
A acondroplasia é uma condição complexa que afeta o desenvolvimento dos ossos longos e da base do crânio. "Não se trata apenas de altura", explica Susy. "A mutação genética faz com que o corpo produza, ainda no útero, uma proteína que deveria surgir apenas na fase adulta para frear o crescimento. Isso impede o desenvolvimento ósseo e gera comorbidades graves".
Para Susy, a resistência do governo em incorporar o medicamento é um erro estratégico e humano. "Cada ano que o governo nega o Voxzogo, ele está selando um futuro de cirurgias de coluna e perda de autonomia que custarão muito mais ao Estado no longo prazo", afirma.
Direito negado
A servidora pública Camila Dybax, de 27 anos, e o vendedor Eric Montilla, de 32 anos, são pais da pequena Bella, de dois anos, que tem nanismo, e um bebê de oito meses, que não apresenta a condição. Por intermediação do Instituto Amor e Carinho (IAC), de São Paulo, centro especializado em genética, doenças raras, agudas e crônicas, ganharam na Justiça o direito ao medicamento, que a criança utiliza desde julho de 2024.
Sempre foram assertivos em comprovar a eficácia do Voxzogo no desenvolvimento da filha – a cada três meses, enviavam relatórios médicos ao juiz. Com um ano do remédio, Bella cresceu 14 centímetros, deixou de sentir dores nas penas, passou a dormir melhor e respirar sem o risco de apneia. As pernas desentortaram e o fêmur cresceu cinco centímetros. “Ela tem mais autonomia, consegue ficar de cócoras, sobe nas coisas, não tem dor pra andar, brinca o dia inteiro, pula, os membros estão ficando mais proporcionais”, conta a mãe.
Em setembro, outubro e novembro desse ano, seguidamente, o STF pediu mais informações à família, o que foi devidamente encaminhado. “Na primeira semana de dezembro, o ministro pediu que enviássemos foto da medicação, mostrando como está armazenada, para o dia seguinte. Mandamos a foto da geladeira. O ministro então enviou a decisão suspendendo a medicação, alegando que desde 2022 não há estudos comprovando a eficácia a partir de 24 meses de uso, que não tem avaliação da Conitec”, conta Camila.
A Justiça, então, determinou o recolhimento do medicamento que está na casa da família, obrigando que pare de ser usado (a quantidade é suficiente até março de 2026). “O oficial de Justiça não buscou ainda, mas resolvi continuar usando e disse ao advogado que cuida do nosso caso que, qualquer consequência jurídica, eu respondo. Não vou parar o tratamento, já estamos recorrendo da decisão. Estamos revoltados com a situação”, diz a servidora pública.
“Sempre entregamos tudo certo, no prazo, mostrando a evolução dela com a medicação. Sabíamos que a decisão poderia mudar, mas tirar o que já tem em casa é revoltante. Estamos todos incrédulos”, conta Eric.
Estigma
A falta de acesso ao tratamento perpetua um ciclo de exclusão que a maioria da sociedade desconhece. “Na vida adulta, muitas pessoas com nanismo não conseguem realizar a própria higiene pessoal porque os braços não alcançam o corpo. Eles não conseguem acionar o elevador, usar banheiros públicos ou subir em ônibus. Vivem escondidos com medo de serem ridicularizados. Por isso não encontramos pessoas com nanismo na rua facilmente", pontua Susy Brandão.
Um dos maiores mitos derrubados por Susy é a ideia de que o nanismo é uma condição restrita a famílias que já possuem o gene manifestado. Estatisticamente, 80% das crianças com acondroplasia nascem de pais de estatura média. Trata-se de uma mutação aleatória que ocorre no momento da fecundação.
“O avanço da ciência trouxe a solução para as comorbidades, mas o acesso permanece trancado atrás de um cifrão de sete dígitos. A luta de famílias e advogados agora é para que o direito à saúde e à dignidade humana prevaleça sobre as planilhas orçamentárias. Precisamos de conscientização para transformar empatia em ação. A ciência avançou, mas o acesso retrocedeu", diz Susy.
Antônio, de 1 ano e 11 meses, começou a receber o remédio quando estava perto de completar um ano – utiliza a medicação desde 4 de janeiro desse ano, como conta a mãe, a arquiteta Bianca Stefanin, de 35 anos. “Desde então, sempre recebíamos tudo certinho, enviávamos os relatórios médicos a cada três meses. Uma decisão no processo garantia que ele receberia o remédio durante toda sua fase de crescimento e desenvolvimento”, diz Bianca.
As melhoras do menino são visíveis. “Começou a andar - as pessoas com nanismo geralmente demoram mais para andar -, consegue comer sozinho, tem força para subir em bancos ou outros objetos, quer explorar as coisas, sair andando. Antônio é alegre, carinhoso, comunicativo, bagunceiro, ama explorar a vida, brincar, estar na rua”, descreve a arquiteta.
Mas em outubro desse ano veio a negativa. “O juiz determinou que ele pararia de receber, que não tem comprovação da eficácia do remédio." E, realmente, o Voxzogo não chegou mais – Bianca tem remédio para mais um mês. Uma advogada cuida do caso e tenta reverter a decisão.
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“Sei que essa é uma luta que vamos enfrentar por toda a vida. Infelizmente, o acesso à saúde no Brasil é uma dificuldade. É direito do povo e dever do estado proporcionar para todas as pessoas, com doenças raras ou não, o acesso a saúde. Isso é básico. Há por trás um conflito político, de interesses - uma hora fornece, outra não”, diz Bianca.